04 DE JUNHO DE 2024
NÍLSON SOUZA
Desagravos
Agora que as águas começaram a baixar, começa também uma temporada de buscas. Muitas pessoas que estão voltando para suas casas semidestruídas procuram pedaços de suas histórias de vida entre os escombros da inundação: um documento de identidade, uma foto do casamento, a carta do parente distante, aquela roupa de todo dia, o livro predileto, os primeiros desenhos dos filhos, coisas aparentemente sem importância para quem apenas observa, mas de incomensurável valor afetivo para seus proprietários.
Em meio a esse rescaldo sentimental, há quem procure apenas culpados. Também isso é compreensível, pois o sofrimento e as perdas geram natural inconformismo. Nesse momento de dor e passionalidade, a revolta recai prioritariamente sobre os administradores públicos de plantão, inclusive aqueles que vêm se empenhando ao máximo para atenuar os efeitos da catástrofe. É do jogo. Quem ocupa o poder político tem que suportar o ônus do cargo, mesmo que as principais falhas apontadas viessem se repetindo por sucessivas administrações.
Só não acho justo que culpem o Guaíba. Ou o mês de maio. Nosso rio-lago sempre esteve por aqui, desde o início dos tempos. Nós é que invadimos sua vizinhança e suas águas. Nem preciso recordar tudo o que fizemos com ele em nome do desenvolvimento urbano. Ainda assim, também não creio que ele esteja se vingando ou dando o troco. Apenas se expandiu naturalmente, para dar vazão ao volume das águas recebidas de seus afluentes e da extraordinária precipitação pluviométrica registrada sobre o Estado no mês de maio.
O mês das noivas também está sendo injustamente injuriado. Uma vez escrevi uma crônica de desagravo a agosto, que é o mês do meu nascimento e carrega como única maldição comprovável a triste rima com a palavra desgosto. Pois agora também faço questão de isentar maio de qualquer responsabilidade. É um pensamento mágico, incompatível com a realidade, transferir ao rio ou ao calendário a nossa própria insensibilidade em relação ao meio ambiente.
Mas o momento é de aprendizado, e não de autoflagelação. Só sairemos revigorados deste dramático episódio se enfrentarmos o negacionismo climático e passarmos a respeitar mais as dádivas da natureza, inclusive esse espelho líquido que nos oferece, em todos os meses do ano, o mais lindo pôr do sol do mundo.
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