17 DE SETEMBRO DE 2022
J.J. CAMARGO
SLOW FOOD
Umas das primeiras coisas que se aprende na Itália é o quanto esse povo respeita a cultura que faz da refeição uma oportunidade única de congraçamento.
Na primeira visita, com mais coisas pra ver do que tempo para desperdiçar, é comum que se busque para almoçar ou jantar um lugar agradável, limpo e, muito importante, rápido. Uma atitude típica de quem acha que comer é só o jeito de matar a fome. E isso definitivamente não combina com a secular cultura italiana. Tudo deve ser entendido como um ritual, com sequência estabelecida por décadas de tradição e intervalos de espera entre um prato e outro.
No início dos anos 1980, estreamos na Itália e, impressionados com a abundância dos pratos, servimo-nos de uma massa maravilhosa. Estranhamos que só depois dela viesse a salada com verdes e vinagre, ao fim da qual, completamente fartos, pedimos a conta.
Este pedido, que seria interpretado como normal em outros lugares, desencadeou uma reação de indignação em cadeia, em que as esposas (mogli) que atendiam as mesas avisaram aos maridos (mariti) cozinheiros, em um tom de voz agressivo, que eles podiam interromper os pratos de fundo, porque nós não tínhamos gostado da comida. Por pouco não fomos expulsos daquele simpático restaurante com toalha e guardanapos muito brancos, onde ficou claro que a quebra do ritual é um sinal grosseiro de desapreço pelos proprietários.
O racional dessa sequência é dar tempo para a conversação, o que faz da mesa uma espécie de altar de aproximação e fraternidade. E se tudo for regado a um bom vinho, estabelece-se a condição perfeita para o emprego da palavra, não apenas dita, mas muito mais importante, ouvida. A família ou os amigos reunidos encontram neste ambiente o cenário perfeito para compartilhamento das suas alegrias, deboches, risos e, eventualmente, de tristezas e desencantos. Esses sentimentos que definem a vida como uma condição que alternadamente pede que acolhamos ou sejamos acolhidos.
Por conta dessa festejada tradição, a Itália relutou muito em receber a primeira loja fast-food do McDonald?s. O intento de alocá-la logo na Piazza di Spagna, o coração de Roma, mereceu críticas ainda mais ferozes.
Como todos concordam que atentar contra uma cultura enraizada, seja social, política ou religiosa, é sempre uma desinteligência (Salman Rushdie que o diga), entende-se porque a iniciativa de Carlo Petrini, um jornalista italiano que é Embaixador da Boa Vontade da FAO no seu país, foi tão festejada quando criou o movimento internacional do slow food, com várias ações contra o fast food, e logo encontrou tantos adeptos, que se estendeu a Paris e outros grandes centros europeus.
"A comida era, e ainda é, um aspecto essencial das festividades, do convívio, das tradições piemontesas, como cantar e dançar, e assim, crescendo, fui tomando consciência desse aspecto cultural, social, histórico da comida, que começava a ser ameaçado por uma falsa ideia de modernidade", declarou Petrini.
E convenhamos, a cena frequente em restaurantes históricos, em que o noivo ajoelhado pede a sua amada em casamento, requer um ar de solenidade que definitivamente não combina com o grotesco da mordida num Big Mac e o ketchup escorrendo entre os dedos.
A solenidade que envolve uma refeição pode ser uma cortina de delicadeza, protegendo-nos daquelas grosserias do cotidiano apressado que não conseguimos evitar.
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