sábado, 31 de maio de 2014







01 de junho de 2014 | N° 17815
MARTHA MEDEIROS

Mulher escrevendo enquanto toma chá

Sempre fico insegura na hora de intitular o que escrevo. Meus poemas nunca tiveram título. Nos livros, é a última coisa que escolho (em meio a dúvidas infinitas). E os das colunas refletem a minha preguiça: deveria me esforçar mais para atrair a atenção do leitor, mas depois de já ter me dedicado o suficiente na elaboração do texto, o título é praticamente um resumo do assunto tratado, sem nenhuma acrobacia literária ou jornalística.

Isso explica o fato de eu admirar a simplicidade do título de inúmeras telas expostas nos museus do mundo. São praticamente legendas: Vista de Paris do Apartamento de Theo é o nome do quadro em que Van Gogh mostra os telhados que seu irmão, Theo, vislumbrava todos os dias, ou Campo de Trigo com Cotovia, onde o mesmo Van Gogh, com suas pinceladas geniais, mostra o quê? Um campo de trigo sendo sobrevoado por uma cotovia. Nenhuma charada, nenhuma metáfora, nenhuma gracinha. Van Gogh pintou a si mesmo usando um chapéu de feltro: qual o nome da tela? Autorretrato com chapéu de Feltro. Para que inventar?

É como se a obra dissesse: acredite no que você está vendo. Jovem Camponesa com uma Enxada (Jules Breton), Casa ao Lado da Ferrovia (Edward Hopper), Criança Brincando com um Caminhão (Picasso). Não há dúvida, você está vendo uma camponesa, uma casa, uma criança. E a partir daí, está liberado para descobrir que aquela camponesa é especial, com seu dedo apoiado na face, pensativa em meio ao descanso da lida. E que aquela casa não é uma casa qualquer, mas um ícone da solidão rural diante do crescente progresso. E que aquela criança brincando com um caminhão não é um menino, e sim uma menina, e que os traços decorativos atrás dela não fazem parte de um papel de parede: representam um jardim.

O nome que damos às coisas é apenas um identificador sem maior importância. O que importa é nosso olhar e nosso foco: tudo é único. Cada coisa, cada pessoa, cada gesto, cada segundo é rico de significados e irreproduzível.

Mulher Deitada Lendo. Pelo menos uns 279 artistas poderão pintar um quadro com esse título e veremos 279 representações individuais sobre o mesmo tema. Até mesmo um traço horizontal com um asterisco na ponta pode significar uma mulher deitada lendo.

O título está ali apenas para nos pegar pela mão e nos levar para dentro – de um quadro, de um texto ou até da vida de alguém. Não por acaso, é a primeira coisa que perguntamos diante de um desconhecido: qual o seu nome? E a partir dali aquela Maria Fernanda ou aquele João Paulo terão nos dado a senha para criarmos uma história da qual faremos parte também.

Você pode me ver agora? Uma mulher escrevendo enquanto toma chá de maçã. Sim, é de maçã. Como não é uma tela, e sim uma página de jornal, não pude me alongar. Mas a partir desse título simplório você pulou para o lado de cá.




01 de junho de 2014 | N° 17815
ANTONIO PRATA

Fio dental

Fiquei na dúvida se começava esta crônica com “O ser humano não aprende com os próprios erros” ou “Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno”. São dois começos tonitruantes, como convém a um tema tão profundo quanto o anunciado no título.

A primeira afirmação tem a vantagem de exprimir uma verdade, mas é esse também o seu defeito: de tão verdadeira soa como uma dessas platitudes escritas em para-choque de caminhão. Já a segunda frase é duvidosa, mas traz ao menos a graça e o suspense da provocação irresponsável: será um calo pior do que um terremoto? Não creio. Um cronista, porém, precisa fazer suas escolhas: entre a fria verdade e uma mentira bem refogadinha, jamais deve titubear, de modo que...

Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno. Veja o caso do fio dental que arrebenta. Tenho 30 dentes na boca, o que resulta em 28 vãos, dos quais 27 não me causam problema algum: o fio entra tranquilamente, desliza de cá pra lá, de lá pra cá e leva embora os tributos indevidos que me recuso a pagar às cáries, ao tártaro e à placa bacteriana. Há um vãozinho, contudo, embaixo e à esquerda, em que os dentes estão próximos demais.

Em meus 37 anos sobre a Terra, encontrei uma única marca de fio dental capaz de penetrar essas encostas mortais e sair incólume. Todas as outras, das diáfanas fitas mentoladas aos robustos cabos oferecidos em banheiros de churrascaria, arrebentam no meio do caminho. Se eles só arrebentassem, tudo bem: a encrenca é que abandonam ali, na zona do agrião (literalmente, dependendo do cardápio) parte de sua matéria, piorando a situação.

Pois bem: eu sei que só uma marca dá conta do recado, que todas as outras se rompem, mas às vezes meu fio dental acaba, ou vou viajar e esqueço de botá-lo na mala – e é aí que chegamos ao para-choque de caminhão. O ser humano, não aprendendo com os próprios erros, tenta se enganar, pega o fio dental da mulher e pensa assim: “É só ir com jeitinho, só ir no ângulo certo que vai rolar”. Pronto: o fio entra, rasga e parece que tem um caroço de goiaba empurrando um dente pra cada lado.

O ser humano não só não aprende com o próprio erro, como insiste. Ele inventou a clava e depois a flecha e depois a espingarda e depois a bomba atômica e depois de arrebentar o fio pela primeira vez, o que ele faz? Tenta de novo. E arrebenta de novo. Ele desiste? Sai pra comprar o fio certo? Não: ele resolve enrolar o fio dental, fazer uma espécie de trancinha que, com sua dupla resistência e a fé em Deus, retirará os resíduos alimentares e os fiapos dos companheiros tombados em combate.

A trancinha rasga, claro. Os dentes pulsam, como se houvesse um caroço de azeitona entre eles. É agora que o ser humano desiste? Não. O ser humano vai seguir tentando, com fios triplos, quádruplos, com linhas de costura, de pesca, cabos de aço, de alta tensão, com o Trópico de Capricórnio e a Via Láctea, até que o cansaço ou a humilhação o atirem na cama.


Pensando bem, acho que me enganei ao duvidar que os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que tornam a vida um inferno – o que me força a admitir que o ser humano, às vezes, aprende com os próprios erros. (Devia ter começado com “Veja o caso do fio dental que arrebenta.”).

01 de junho de 2014 | N° 17815
PAULO SANT’ANA

Profusão de cesarianas

Um milhão de mulheres dão à luz por ano através de cesarianas no Brasil, segundo o levantamento Nascer no Brasil. No setor hospitalar privado, mais de 80% dos partos acontecem com cesarianas. E, no SUS, mais de 50% dos partos são cesáreas.

Portanto, já não se fazem mais mães como antigamente. Antigamente, as mães se orgulhavam de sentir a dor do parto. Hoje, elas preferem se esconder atrás das anestesias nas cesáreas.

Tudo bem que sejam feitas cesáreas quando haja necessidade clínica. Mas a maior parte das cesáreas é realizada no Brasil sem justificativa clínica.

A Organização Mundial da Saúde está protestando por essas incontáveis cesarianas que se fazem por aqui. O que quer dizer que esse caudal cesariano é desaconselhável para a saúde das mães brasileiras.

Desconfio de que essa preferência pelas cesarianas esteja ligada a que as mães brasileiras em sua maioria preferem não sentir a dor no parto e fogem para a anestesia nas cesáreas.

É estranho isso. Até agora eu pensava que a mulher, ao ter parto natural e sofrer uma das dores mais terríveis que existem, junto com a dor renal, tornava a dor do parto inesquecível e por isso mesmo amava ainda mais profundamente o seu rebento. Amor de mãe, se diz, é o maior de todos os amores.

Mas terá a mesma intensidade o amor da mãe quando o filho nasceu por cesariana? Não é intrigante o que proponho?

Grande parte das cesarianas é feita porque as mães sentem-se ansiosas lá pela 35ª semana do parto e pedem aos médicos que antecipem o nascimento pela cesárea. Entre as mulheres que optaram desde o início da gestação pela cesariana, um terço delas referiu no levantamento que o fez por medo da dor do parto.


E, entre as mulheres que já haviam feito cesariana em parto anterior, apenas 15% delas fizeram depois partos vaginais. Interessante. Gostaram da cesariana. O levantamento não trouxe um dado que me torna curioso: se a maioria dos partos com gêmeos ou trigêmeos é feita ou não pela cesariana. Acredito que sim, dada a demora maior e teórica dificuldade maior no parto vaginal de gêmeos, é o que calculo.
01 de junho de 2014 | N° 17815
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

Passeando de dindim em Gramado

Li que mil argelinos já compraram tíquetes para passear no dindim de Gramado durante a Copa. Você sabe o que é o dindim, aquele trenzinho

com vagões puxados por um pequeno trator. Criança adora andar de dindim. Por que será que os argelinos também gostam tanto, a ponto de fazerem mil reservas?

Uma hora dessas, eles devem estar ansiosos, lá na Argélia. Devem estar comentando com os amigos: – Vou ao Brasil, andar de dindim. Bacana.

O bom da Copa é isso, conhecer outras culturas. Os argelinos são africanos. Os nigerianos também, e também eles virão para cá. Os nigerianos são muito respeitados na África. Pela pujança da sua economia, sim, mas sobretudo por outro fator: os homens nigerianos gozam da fama de serem bem dotados anatomicamente, se é que você me entende.

Você dirá que os africanos  em geral já desfrutam dessa boa imagem. Certo.

Só que os nigerianos são invejados pelos outros africanos! Imagine, agora, o que é um nigeriano perto de, por exemplo, um japonês.

Na Copa de 2010, os sul-africanos a toda hora vinham falar dos nigerianos. Olha lá os nigerianos, apontavam. Olha lá. Existem máfias de nigerianos na África do Sul. Eles são temidos. Ficam em grupos pelas ruas de Joanesburgo, vestindo chapelões, mascando chicletes, enfeitados com braceletes e correntes de ouro.

Se você passar por perto e eles te chamarem: – Hey, bro! Saia correndo. Um perigo, os nigerianos. Mas não se aflija. Os nigerianos que vierem para cá não serão perigosos. Serão, provavelmente, nigerianos ricos. Mesmo assim, lembre-se de duas coisas: 1. Um nigeriano é sempre um nigeriano, com todos os seus atributos.

2. Aquilo que as mulheres vivem repetindo, “tamanho não é documento”, aquilo é mentira. E provo. Um dia, um repórter metido a espirituoso resolveu provocar Ava Gardner e perguntou, referindo-se a Frank Sinatra: – O que você quer com aquele magricela de 55 quilos?

Ava fitou-o com seu melhor olhar blasé amendoado e respondeu: – Cinco quilos são só de “dick”.

Parabéns, Frank. Ruy Castro conta não ter sido à toa que Garrincha nasceu em Pau Grande. E as mulheres não fugiam dele... Aliás, Garrincha não tinha ascendência africana. Era índio fulniô, das Alagoas.

Uns índios pacíficos, não como esses que deram flechadas nos policiais de Brasília. Índios brabos de verdade eram os ferocíssimos goitacases. Eles tinham um método temerário de caçar tubarões: o goitacás mergulhava armado apenas de um pedaço de pau. Quando via um tubarão, investia de frente contra ele.

O tubarão, óbvio, tentava mordê-lo e o índio metia-lhe o galho verticalmente na bocarra. O tubarão, assim, não conseguia mais fechar a boca. O guerreiro aproveitava-se para enfiar o braço goela adentro do bicho e, com a mão nua, arrancar-lhe o coração. Isso que é índio, não esses que andam de cocar e calção Adidas, falando ao celular!

Sobre índios brasileiros, por sinal, eles são conhecidos em outro país que virá a Porto Alegre: a Coreia do Sul. Na Copa de 2002, poucos brasileiros foram à distante Coreia do Sul.

Mas havia um grupo que seguia o Brasil por toda parte, uns caras fantasiados de índios. Eles saíam pelas ruas vestidos com penas, o rosto pintado, soprando apitos, batendo tambores. Os coreanos olhavam meio assustados para aquilo. Um dia, eu estava com jornalistas coreanos em um shopping e o grupo esse chegou, fazendo grande alarido. Um jornalista coreano arregalou os olhos: – É assim no – Não, não, por favor...

Esses são apenas torcedores. O Brasil é um país moderno... Se o coreano lê as notícias sobre o Brasil,

deve estar me chamando de mentiroso. Temos que dar um jeito de pacificar esses índios. Acabaram as contas de vidro? A Coreia do Sul é um país circunspecto.

Nada a ver com aquele Psy, o cantor. Os coreanos se orgulham de seus filhos estudiosos e de seus banheiros públicos limpíssimos. Banheiros, por Deus.

Dizem os coreanos que um dos seus banheiros públicos é o mais limpo do mundo. Visitei-o e, realmente, é um primor. Lembrou-me uma faxineira que tinha. Uma faxineira pelada. Sério.

Ela fazia faxina no meu apartamento às segundas. Uma tarde, por algum motivo, tive de passar em casa mais cedo. Entrei e ouvi o barulho de água correndo no banheiro. Fui ver o que era. Era ela, limpando o box.

Nua. Era uma faxineira meio gorda e muito branca. Estava de costas para a porta, de quatro, esfregando o chão com fúria higiênica. Aquela visão me fez estremecer. Recuei, para que ela não percebesse a minha presença. Saí de mansinho e corri até o bar da frente.


Pedi um bourbon para me recuperar. Nunca mais voltei para casa sem ligar antes. Agora, tenho de reconhecer: aquela faxineira sabia limpar um banheiro. Devia ser de ascendência coreana. Coreanos, nigerianos, argelinos. Porto Alegre terá a oportunidade de conhecer esses povos e tantos outros mais. Não é uma beleza? Só um conselho: mantenham suas mulheres longe dos nigerianos. Cuidado com os nigerianos!

01 de junho de 2014 | N° 17815
FABRICIO CARPINEJAR

A mão da filha

Rituais me comovem. E ainda mais quando são desnecessários.

Um deles é quando o jovem pede a filha em namoro para os pais.

Ninguém usa cerimônia para começar um relacionamento. Namoros se iniciam com um clique no Facebook e terminam com o bloqueio no Facebook.

Por isso me espanta quem enfrenta a família da pretendente. Quem se importa com a opinião dos mais velhos, em empenhar a palavra, em olhar nos olhos, em indicar firmeza de laços.

Não é tarefa pequena criar um compromisso com o futuro, transparecer intenções sérias, evidenciar que não está brincando, admitir que está apaixonado e arcar com as consequências da escolha.

Há uma tendência em ser imediatista e descomprometido, em privilegiar o presente e a independência do desejo. É cômodo manter o romance a dois, qualquer ruptura não terá efeitos públicos, é sair e se desligar com facilidade. Os segredos ficam restritos e não interessa aos demais.

Sou absolutamente sentimental com a coragem dos românticos.

O adolescente que rompe com o egoísmo e divide suas expectativas é um louco de minha mais completa admiração. Olha que coisa estranha de se dizer: loucura hoje é ser tradicional, é se apegar, é honrar o núcleo familiar, é oficializar o arrebatamento.

Quem pede em namoro diante da família não pode fugir de repente, mudar de ideia e desaparecer. Declara o endereço de seu coração, o CEP, o CPF, mostra quem é e o que deseja.

Quem tem essa ousadia de não voltar atrás em seus próprios sentimentos e honrar promessas? De se incomodar em ouvir o que os outros pensam, em suportar o constrangimento do primeiro encontro e a secura da garganta?

Ficar na sala aguardando o momento certo de abrir a boca entre o comercial e a novela. Escolher as frases mais sensatas e tentar encontrar clareza para expor pensamentos confusos e emaranhados da paixão.

E não é somente falar, é estar receptivo a um sermão, a uma negativa, a restrições, a represálias. É se colocar dentro de um convívio, com regras e ritmo desconhecidos.

Mais do que educação, significa respeito. É cuidar daqueles que cuidaram dela antes. É proteger aqueles que dedicaram a vida a protegê-la.

É valorizar o passado da mulher, abrir um novo ciclo e arcar com as expectativas dos atos.

É avisar a família antes do mundo — quer uma prova maior de reverência?

Meu amigo Claiton teve essa dádiva. Quando o rapaz pediu sua filha em namoro, ele baqueou pelo reconhecimento, surpreendido pelo tamanho cuidado.

Recebeu o candidato para um café. Aguardou que ele falasse, falasse, falasse de toda sua fé e o quanto estava sendo feliz.

Assim que ele pediu a mão de sua filha, Claiton não facilitou. Emudeceu longos minutos. Encarou ambos, respirou fundo e confessou:

– Não lhe dou a mão de minha filha, deixa a mão comigo, tá? Você já tem todo o corpo e alma dela, a mão é minha. A mão é do pai se ela precisar voltar, se ela precisar que eu a puxe de volta. Combinado?

Quando o homem faz um pedido formal de namoro, ele oferece algo muito importante e inesquecível à sua namorada: a declaração de amor do pai.


Permita essa delicadeza para sua mulher.

WALCYR CARRASCO
30/05/2014 21h49

A arte da pechincha

Na Holanda, uma senhora que me atendia me passou o preço de um suvenir. Respondi: “Pela dúzia?”

Adoro pechinchar. Sou capaz de discutir por centavos. Como toda arte, a pechincha exige talento e disposição. Em Israel e na Turquia, conheci templos, cidades subterrâneas, lugares que fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. Mas uma das minhas melhores recordações são as lutas por desconto nos mercados árabes. Em Israel, ao discutir o preço de uma mala comum, ouvi o que considero o maior elogio, de um vendedor árabe.– Mister, you are so hard!

E chegou no meu preço!

Em Istambul, cheguei a ponto de devolver um kit de temperos de US$ 30. Eu só chegava a US$ 10. Fingi que ia embora, o vendedor correu atrás de mim, entregou o kit e levou os US$ 10.

Um dos segredos na pechincha é ter cara de pau. Seja onde for. Na Holanda, perguntei o preço de uma lembrança num quiosque de produtos típicos. A velha senhora que me atendia deu o valor. Respondi: “Pela dúzia?”.

Seguiu-se uma briga de duas horas por cada tamanquinho de porcelana, miniatura de moinho de vento ou camiseta com a palavra Amsterdam. Um casal de japoneses acompanhava a cena surpreso. A mulher chegou a inquirir um amigo que me acompanhava nas compras: – Como você suporta ficar perto desse sujeito?

Como acontece em todos os lugares do mundo, ela disparou o mais antigo refrão dos vendedores: – Se eu vender por esse preço, serei demitida.

Respondi que não acreditava, que ganharia aumento por vender tão caro. Durante a batalha, falamos de nossas vidas. Com cerca de 80 anos, respondeu que era viúva duas vezes e não pretendia casar mais, para não ter de fazer café e cuidar de marido.
– Já enterrou dois, enterre o terceiro – disse eu.

Rimos. Uma boa discussão sobre pechincha entra em intimidades, brincadeiras capciosas, falsas agressões. Terminamos quase nos abraçando, enquanto eu pagava as compras.

Nos mercados árabes, o vendedor só respeita quem pechincha. Fica até um pouco decepcionado quando alguém aceita o primeiro preço. O segredo é começar com um décimo do valor pedido. Ou perguntar se aquele é o preço da loja toda, não do tapete. Muitas vezes, terminei tomando chá com eles, satisfeitos, nos olhando com respeito mútuo.

Muita gente tem vergonha de pedir desconto. Bobagem. Seja nas feiras livres ou nos grandes magazines, desconto sempre é possível. Em loja de cadeia de eletrodoméstico, o vendedor diz que não, não. Depois responde:
– Vou ver o que posso fazer.

Entra no computador. Pois é. O programa já sugere várias categorias de preço. A tabela e aquele para quem guincha como um porco estripado. Em certo momento, ele diz: – Cheguei ao máximo. O computador não aceita abaixo disso.

É a hora de chamar o gerente. Aí vem uma autorização extra! Mais abaixo! Já consegui, em empresas que montam cozinhas e armários embutidos, meus 60%. Essas empresas trabalham com margens boas de lucro, estão abertas a alternativas de pagamento, diferenças à vista ou parcelado.

Em lojas elegantes, que oferecem cafezinho e taça de champanhe, com vendedoras bem trajadas, parece até feio pedir desconto. Não é. A maioria só não pede porque parece falta de fineza chorar preço. Um aviso: o dinheiro é meu, é seu. Defendê-lo é justo. Se, depois, algum vendedor me chamar de miserável pelas costas, qual o problema? Fui fazer uma compra, não estabelecer amizade. De fato, os vendedores tendem a se tornar mais amigos de quem pechincha. Na discussão, trava-se uma relação mais próxima, mais humana e divertida. 

Outro dia, fui a uma loja de utensílios domésticos, num shopping sofisticado. Me interessei por uns vasos. Na guerra estabelecida, veio a gerente. Ela ligou ao supervisor, para chegarmos a 5% em três vezes. Pouco, mas melhor que nada. Mesmo grandes grifes masculinas se deixam vencer, também nos 5%. Que sensação agradável, um desconto!

Em outras, reconheço, desconto é impossível. São joalherias, onde um brinco ou relógio custa uma grana. Choro, choro e parcelo em dez vezes sem acréscimo, no cartão. Aí,  já na porta, lamento com a gerente:
– Mas nem um presente você vai me dar?

Já descolei uma carteira de couro para passaporte, uma manta lindíssima de cashmere. Se compro uma caixa de charuto, saio com cinzeiros, isqueiros, o que estiver dando sopa. Seja na feira ou no shopping, meu negócio é pechinchar. Só é preciso perder a timidez e ir em frente. No final, dá uma incrível sensação de vitória!


31 de maio de 2014 | N° 17814
COMPORTAMENTO PROFESSORES E ESTUDANTES NAS REDES

Existem limites na relação virtual?

A MELHOR MANEIRA de interagir com alunos e pais em redes sociais é dúvida frequente entre os educadores. Tem quem separe perfil pessoal do profissional e aqueles que aceitam todos os convites. Escolas não têm o costume de impor normas

Entre os dois perfis mantidos no Facebook, a diferença fica evidente pelo título que antecede o nome em um deles: “professora”. À frente de uma turma de 5º ano no Colégio Marista Rosário, de Porto Alegre, Katherine Bridi optou por separar, no universo virtual, as esferas pessoal e profissional de sua vida, adaptando os conteúdos postados.

Dúvidas sobre a melhor maneira de se relacionar com alunos e pais nas redes sociais são frequentes no dia a dia de quem atua na área da educação. É preciso aceitar todos os convites de amizade? Deve-se discutir questões da sala de aula via chat? É adequado postar fotos dos períodos de lazer?

Aos 28 anos, Katherine é querida pela turma e valoriza o contato extraclasse, mas sempre com cautela. Na página particular, liberada para amigos e familiares, estão fotos de viagens, ao lado do noivo, em festas. Na profissional, exibe dicas e links relacionados às disciplinas do currículo e também alguns registros da rotina longe da escola, mas com restrições.

– Sempre tive a convicção de que não aceitaria alunos no perfil pessoal. Não que eu faça algo fora do comum, mas quero me preservar – justifica.

Os mestres acabam encontrando soluções variadas para administrar o interesse que cerca sua presença na internet. Há quem altere a grafia do nome ou utilize o sobrenome menos conhecido para dificultar as buscas e não ter de barrar usuários. Outros liberam o acesso apenas a ex-alunos ou só para adolescentes a partir de determinada idade.

Dimis Silveira, que leciona inglês, decidiu não recusar nenhum convite – soma quase 5 mil amizades no Facebook. Nos últimos dias, compartilhou fotos dos filhos no apartamento próprio recém-adquirido e recebeu centenas de curtidas e comentários com felicitações.

– Os alunos te veem como um ser humano que também tem família, tem gostos. Mas dou limite, tem coisas que não falo. Não passo nota nem pareceres. Digo para me procurar em aula – explica Silveira.



31 de maio de 2014 | N° 17814
NÍLSON SOUZA

DIÁRIO DE UM CONTADOR

Termo de abertura – Contém o presente texto 1 (uma) página tipograficamente numerada, compondo o diário único do autor acima identificado, residente nesta cidade e neste Estado, com seu contrato emocional arquivado na Junta Confidencial sob número indefinido, inscrito no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jornalística) sob número racional, ou irracional, tanto faz.

Brinco com a terminologia da profissão que não exerci, pois muito cedo troquei a Contabilidade pelo Jornalismo. Mas foi o curso técnico daquela escola pública de periferia que me capacitou a enfrentar o vestibular e a concluir a universidade. 

Confesso que nunca preenchi completamente os livros Diário e Razão, que são as bíblias da Contabilidade. Mas aprendi a fazer registros e lançamentos contábeis, a fechar balancetes e balanços, a calcular receitas e despesas, a identificar ativos e passivos – e me tornei um contador de histórias.

Pois a história que conto hoje é também um registro imensurável de agradecimento. Neste sábado, estarei na Escola Municipal de Educação Básica Dr. Liberato Salzano Vieira da Cunha, no bairro Sarandi, que está completando 60 anos de existência. Lá, eu e outros ex-alunos estaremos celebrando a bênção de termos encontrado na nossa juventude uma porta aberta para o conhecimento, colegas para sempre e mestres dedicados, aos quais homenagearemos na pessoa do extraordinário professor Harry Rodrigues Bellomo.

Volto ao meu imaginário livro Diário.


Termo de encerramento – Contém o presente registro 1 (uma) página tipograficamente numerada, compondo o diário de saudade e gratidão deste escriba pelas lições, pelo carinho e pelas amizades que encontrou na sua antiga escola.

31 de maio de 2014 | N° 17814
PAULO SANT’ANA

O sangue de Cristo

Quando a gente tem 10 anos de idade, tudo o que se quer é vir a ter 20 anos.

Quando se tem 20 anos, quer-se vir a ter 30 anos.

E a gente, quando chega aos 30 anos, tem desejo de amadurecer, pretende ter ainda 40 anos.

Só que, quando a gente atinge os 40 anos, sente o perigo e gostaria então de ter novamente 10 anos.

Sempre ouvi falar intrigado da expressão orgasmos múltiplos e a liguei à capacidade, unicamente feminina, de ter diversos e contínuos orgasmos com um mesmo parceiro.

Seria como uma metralhadora de orgasmos, uma bateria de prazeres e êxtases em uma só posição com o parceiro.

Até então, eu pensara que tinha orgasmos múltiplos da seguinte forma: fazia sexo com várias mulheres, uma de cada vez, e tinha um orgasmo, um só, com cada uma delas.

Mas não. Agora entendo orgasmo múltiplo como um prazer intenso que não cessa e se segue a outro durante várias repetições.

Deve ser uma coisa genial.

Não há nada mais chato atualmente do que um boletim direto e informativo da Granja Comary, acontece todos os dias em várias emissoras. Que coisa chata!

Dizem que a profissão mais antiga no mundo é a de prostituta. Não acredito, penso que a profissão mais antiga do mundo seja a de carpinteiro.

O pai de Jesus, José, era carpinteiro. O carpinteiro que fabrica as mesas e os bancos faz também os caixões do cemitério.

Por sinal, José foi carpinteiro e um colega seu de profissão pregou seu filho na cruz.

Não entendo sinceramente quem fabricava os pregos no tempo de Jesus, se não havia ainda a Gerdau.

A madeira, retirada das árvores, está ligada ao nascimento, à vida e à morte de Jesus: quando nasceu, Cristo foi colocado numa manjedoura de madeira; Jesus viveu auxiliando seu pai nos ofícios da carpintaria; e finalmente o Salvador foi pregado ao lenho para ser morto.


A Bíblia diz, no entanto, que Jesus foi sepultado vestido com panos, daí que se discute até hoje se o Santo Sudário que foi recolhido pela Igreja atualmente é legítimo. Se for legítimo, é o maior relicário material do cristianismo. Porque está marcado pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

31 de maio de 2014 | N° 17814
CLÁUDIA LAITANO

Que bonito é

Dois argumentos a favor da paixão pelo futebol sempre comoveram este mole coração ateu. O primeiro é aquele da memória de infância, do guri levado pela primeira vez ao estádio pelo pai e que aprende a associar a paixão pelo clube àquela experiência original de afeto e inserção familiar. O segundo é o da utopia de um repertório afetivo comum a ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, jovens e velhos. O futebol como um Google Tradutor instantâneo de afinidades esteja você na Ucrânia, na África ou no interior do Ceará, seja você operário ou patrão. Que bonito é.

É possível que o futebol como legado de pais para filhos nunca tenha sido tão importante quanto nos dias de hoje. São escassos os patrimônios simbólicos suficientemente estáveis a ponto de criarem a percepção de que podem sobreviver de uma geração para a outra. Valores morais, convicções políticas ou religiosas e tradições familiares tornaram-se fluidas e cambiantes.

O time de coração, por sua vez, ainda sugere permanência, passagem de bastão, afirmação de identidade. Não é de se espantar que os pais se apressem a pendurar a camiseta do clube na porta do quarto da maternidade. Não haveria muitos outros símbolos para exibir ali com tanta convicção.

A fantasia de que a paixão pelo futebol permanece acima da divisão de classes, por sua vez, anda cada vez mais difícil de ser sustentada no mundo real das arenas padrão Fifa. Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento na última segunda-feira, o americano Michael Sandel, professor de ética em Harvard, lembrou o tempo em que a diferença de preços dos ingressos nos estádios de beisebol não passava de US$ 3.

O patrão e o empregado sentavam lado a lado, enfrentavam a mesma fila nos banheiros e comiam o mesmo cachorro-quente gordurento. Nos últimos 30 anos, observa Sandel, lá como aqui, os estádios passaram a reproduzir a lógica do apartheid social de escolas, shoppings, hospitais, parques. Ricos para um lado, pobres (se chegarem lá) para o outro. A falta de espaços de convivência entre pessoas de diferentes origens e perfis, sustenta o filósofo, estaria corroendo um dos fundamentos da democracia: a percepção de que, mesmo que alguns cheguem ao estádio de ônibus e outros de carro importado, todos fazem parte da mesma torcida/nação – e se reconhecem uns aos outros.

É possível que a divisão dos brasileiros em relação a esta histórica Copa do Mundo, embretados entre a paixão nacional e a indignação com tudo o que não dá certo no país, esteja refletindo não apenas a crise de um sistema que favorece a descrença na representação política, mas também, em alguma medida, a nostalgia dos tempos em que o estádio de futebol era o último espaço onde ainda era possível sonhar com um país um pouco menos desigual e cindido.


Que bonito era.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Jaime Cimenti

Até sempre, Mario Quintana!

Há vinte anos Mario Quintana bateu suas asas de Anjo Malaquias e foi viver na estrela de Aldebaran. Menino do Alegrete, escreveu poemas universais, falando de amor, casas, ruas, morte, vida, tempo, amigos,  anjos, velhas tias, sapatos, janelas e muitas outras coisas ditas simples. Foi chamado de “poeta das coisas simples”, mas sua ironia, sua profundidade e sua perfeição técnica, inclusive como tradutor de mais de 130 livros e sua ampla gama de temas mostra que mereceu ser chamado de “poeta de amplo espectro”.

Em termos farmacêuticos, sua obra mágica, que lê a todos nós, poderia ser chamada da maravilha curativa. É cura para todos, ou quase todos os males. Tentaram classificar Quintana como neomodernista, pós-moderno, lírico, romântico, antimodernista, neosimbolista e não sei o que mais. Até de surrealista o carimbaram. Avesso a rótulos, limitações e manifestos efêmeros, Quintana nunca foi de bater continência em quartéis poéticos e obedecer a cartilhas de escolas literárias. Sempre foi ele mesmo, mais para eterno do que para moderno.

Quintana nunca andou na moda. Ele era e é a moda. Sem fazer concessões e sem aceitar limites estéticos, partidários, políticos ou outros quaisquer, Quintana confessou poeticamente seu tempo e sua vida, que também são os nossos, e nos faz lembrar que a poesia é maior e mais importante do que o poeta. Como Gardel,

Quintana está cada vez melhor e maior, ao contrário do que alguns equivocados andavam prevendo. Suas obras são reeditadas e sua poesia segue inspirando canções, peças teatrais, filmes e outras expressões artísticas. A pátina do tempo vai revelando novas visões dos poemas de Mario. Nos julgamentos do tempo e dos leitores, que são os que mais valem, Quintana passa, suavemente, de goleada.

Quintana é imortal pelo povo. Quintana caiu na boca, no coração e na alma do povo, como os grandes poetas. Grande Quintana, não precisou se refugiar e morrer nos pequenos e mofados mausoléus acadêmicos para ganhar a eternidade. Quintana nos mostra que a rebeldia, a criatividade, a vida e os recomeços é que importam.

Quintana nos ensinou a não aceitar conselhos, nem os dele. O resto é o resto. “Todos esses que aí estão/ atravancando meu caminho/ eles passarão/ eu passarinho!” Poeminha do contra de Mario Quintana, tipo testamento a favor da liberdade e do inconformismo, está aí para quem quiser e precisar.


Está aí para espantar pensamentos, pessoas, literatos e outros tipos e coisas menores, que por vezes ficam empatando ou tentando empatar nossos caminhos. Gracias, até sempre, Mario!
Jaime Cimenti

Uma história de horror existencial

O romance Antes que eu queime é a estreia literária no Brasil do consagrado escritor norueguês Gaute Heivoll, nascido em Sorlandet, em 1978, e autor de dez obras envolvendo poesia, literatura infantil e romances. Gaute foi publicado, pela primeira, vez em 2002. A terrível história de Antes que eu queime trata de uma série de incêndios criminosos numa pequena localidade, Finsland, no Sul da Noruega.

Todos temem descobrir que o incendiário seja um vizinho, um amigo ou um conhecido. A obra deu a Gaute reconhecimento internacional, foi aclamada e premiada em toda a Europa e mereceu os prestigiados prêmios Brageprisen e o Sorlandets Literaturpris, na Noruega. O romance está sendo considerado uma das obras mais instigantes da literatura escandinava contemporânea.

A obra parte de um ponto de vista inusitado. Em 1978, diversos incêndios começam a atingir o pequeno vilarejo de Finsland e logo a polícia descobre que um incendiário criminoso está à solta. O medo se instaura entre os moradores da região, que sabem que o bandido pode estar próximo, inclusive na casa ao lado. Nessa atmosfera de tensão e alta turbulência, na antes pacata cidadezinha, cresceu um menino, que foi elogiado por sua professora pelo talento especial que tinha para a escrita. Muitos anos depois, o menino se torna escritor, justamente para narrar a vida do calmo vilarejo que ardeu em meio às estranhas chamas.

A história dos incêndios se mistura aos primeiros meses de vida do autor e atingiu o ponto culminante na noite após o seu batismo. O estilo da narrativa é sóbrio, contido, com frases, parágrafos e capítulos curtos, mas, ao mesmo tempo, é um estilo extremamente vigoroso, com narrações e descrições precisas e ritmo adequado a uma história de horror existencial.


Em meio às paisagens ora verdes, ora nevadas, a vida do autor e o noticiário policial do final da década de setenta, na Noruega, se misturam e são narrados, com muita habilidade, numa pungente de vida, onde há, principalmente, reflexões sobre o ofício da escrita e a fragilidade da palavra. Na verdade, o próprio ato de escrever ocupa o primeiro plano do romance, com suas fantasias, suas obsessões e com a milenar necessidade de contar do ser humano. L&PM Editores, 256 páginas, tradução do norueguês de Guilherme da Silva Barga, R$ 42,00, www.lpm.com.br. 
Fernando Soares

Agenda 2020 renova propostas para Estado

Grupos de trabalho do movimento vão atualizar documento com novas alternativas para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul

Criado em 2006 com o objetivo de contribuir com o desenvolvimento do Rio Grande do Sul em longo prazo, o movimento Agenda 2020 irá renovar sua pauta de sugestões para o Poder Público. Nesta quinta-feira, mais de 300 pessoas, ligadas ao empresariado, universidades e entidades de diferentes segmentos, se reuniram para debater questões relativas ao Estado. A ideia é analisar os resultados obtidos até o momento e criar novas alternativas em 12 eixos, como agronegócio, educação, saúde, infraestrutura, gestão pública e segurança.

“Essas proposições serão consolidadas ao longo do mês, gerando um documento de planejamento para o Estado. O objetivo é levar o material aos candidatos ao governo do Estado”, destaca Humberto Busnello, presidente do Conselho Superior da Agenda 2020. O dirigente fez uma retrospectiva dos objetivos traçados pelo movimento oito anos atrás, comparando o desempenho com os indicadores de momento. A conclusão é que dificilmente as metas serão alcançadas até 2020, data estabelecida como marco na criação da iniciativa.

Um dos alvos a ser perseguidos era igualar o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Chile. Em 2006, o crescimento desse indicador no Rio Grande do Sul era de 1,1% ao ano, enquanto no país andino, de 3,3%. A média atual dos gaúchos segue em 1,1% e a dos chilenos já está em 6,3%. A relação de investimento em pesquisa e desenvolvimento com o PIB também segue estagnada em 0,11%. A meta era chegar a 3,32%, se equiparando a Estados Unidos e Coreia do Sul. Em contrapartida, entre os pontos considerados positivos estão a atividade dos parques tecnológicos e a criação da Lei da Inovação.

Uma das situações mais críticas se refere às finanças do Estado, na visão do diretor executivo da Agenda 2020, Ronald Krummenauer. O dirigente ressalta que de cada R$ 100,00 que entram no caixa do Rio Grande do Sul como receita, são gastos R$ 111,70. “Esse déficit é a consequência mais crítica. Temos claramente um sério problema de gestão pública. Tu não podes gastar quase R$ 12,00 a mais para cada R$ 100,00 que arrecadas. Isso traria problemas no orçamento de qualquer família”, compara. Nesse sentido, o especialista recorda que a média de investimentos atuais não ultrapassa R$ 1 bilhão, enquanto a receita líquida anual se aproxima dos R$ 30 bilhões.

Um dos fatores que sufoca a capacidade de investimento é a dívida com a União. Mesmo com a proposta de mudança no indexador que corrige os juros do débito em trâmite no Congresso, uma solução para o problema ainda precisa ser encontrada, segundo o economista Darcy Carvalho dos Santos. “A dívida não é o maior problema, mas é o único no qual uma solução imediata pode reduzir a despesa. Porém, a proposta que está tramitando não adianta muito. Vai reduzir o saldo devedor da dívida atual, mas vai abrir espaço para novos empréstimos, endividando mais o Estado”, aponta o coordenador do grupo de trabalho de gestão pública da Agenda 2020.

A infraestrutura também está na lista de gargalos a serem equacionados. Atualmente, o custo logístico do Rio Grande do Sul chega a 18% do PIB. Além disso, apenas 7% das rodovias gaúchas estão asfaltadas. “A raiz dos males de infraestrutura está na nossa falta de união, do Poder Público com a iniciativa privada.


Precisamos criar um plano de Estado pensando adiante, algo como a lei de responsabilidade fiscal. Assim, independentemente do governante, o plano seria cumprido”, destaca o empresário Paulo Menzel, responsável pelo grupo de infraestrutura do movimento.

30 de maio de 2014 | N° 17812
MOISÉS MENDES

13 de julho de 2014

A Copa pode não dizer nada para muita gente, por enquanto. Quando começar, a Copa vai dizer tudo, como aconteceu em 50. Há quem sustente até hoje que o Brasil seria um país diferente se tivesse vencido em 50. Que Getúlio não teria se matado quatro anos depois, que os militares não teriam dado o golpe em 64.

Não é agouro, é o que todo mundo fala e vou falar: essa Copa tem um personagem com todos os ingredientes para ser tão trágico quanto o goleiro Barbosa de 50. O goleiro Júlio César pode ir para a final no Maracanã, no dia 13 de julho, com o fardo de Barbosa sobre as costas.

A Folha de S. Paulo encontrou o auxiliar de cinegrafista que fez a única cena do segundo gol do Uruguai, repetida tantas vezes. O ângulo da captação da imagem é tão ruim, que até hoje não se sabe direito se foi mesmo frango de Barbosa.

O que se sabe é que Júlio César vai para a Copa depois de ter falhado no gol da Holanda, que tirou o Brasil do último Mundial. Pra que mexer com isso, logo com o goleiro? Por que não escalar logo Victor no gol? Porque Felipão acha que vai ganhar a Copa com Júlio César defendendo um pênalti.

É cruel a situação do nosso goleiro. Júlio César não poderia ler nada sobre a tragédia de 50. Como essa reportagem que a Folha fez com o auxiliar de cinegrafista Milton Ferreira.

Milton tinha 15 anos em 50, trabalhava para o Cine Laboratório Alex. Todos os cinegrafistas profissionais foram colocados atrás do gol de Roque Máspoli, do Uruguai, porque ali iriam acontecer os gols do jogo.

Chamaram Milton e o orientaram a ficar com a câmera parada atrás do gol de Barbosa, onde nada aconteceria. O Brasil era o favorito, o jogo estava ganho. O guri que pouco entendia de filmagens ficou ali para não fazer nada de importante.

Foi essa a câmera que captou a tragédia, o gol de Ghiggia aos 33 minutos. A imagem é ruim porque a cena da tragédia de 50 não poderia ser iluminada, esclarecedora do que aconteceu. Vê-se o gol num ângulo enviesado. É como se Ghiggia estivesse vindo, de repente, não na direção de Barbosa e do cinegrafista, mas na direção de todos nós.

Barbosa é um dos personagens mais trágicos da nossa história. Aquilo aconteceu num dia 16 de julho. Para quem gosta de números, 16 de julho não era um dia bom para Barbosas. Exatamente 50 anos depois daquela final no Maracanã, num 16 de julho de 2000, morreu outro Barbosa famoso, mas este de boas lembranças, o grande jornalista e humanista Barbosa Lima Sobrinho.

E no dia 13 de julho, data da final da Copa deste ano, o que aconteceu de importante no mundo? Pois foi num 13 de julho (antigo quintilis), cem anos antes de Cristo, que nasceu um cara que ganhou certa fama em Roma. Era um tal de Júlio César. Tão poderoso, que, depois de morto, mudaram o calendário, e julho é uma homenagem ao imperador.


Também ele é um personagem trágico. Mas pense coisa boa. Pense que a numerologia nos salvará e alguém filmará direito a grande defesa do nosso Júlio César na final.

30 de maio de 2014 | N° 17812
DAVID COIMBA

Esquerda e direita

Entre esquerda e direita, prefiro a esquerda. A esquerda faz uma ideia generosa da vida, de defesa do fraco contra o forte. Mas as pessoas de esquerda têm um defeito irritante: o hábito de julgar os outros por suas ideias. Para muitas pessoas de esquerda, quem não pensa como elas é desprezível.

Ideias têm alguma importância. Não muita. Conheço supremos canalhas que são esquerdistas perfeitos. O que torna um ser humano melhor não são suas ideias; são os seus sentimentos e o seu comportamento, sobretudo a forma como trata os outros seres humanos.

O Brasil é governado há meia geração por um partido de esquerda. O PT seria a nêmesis da ditadura militar, a direita mais renhida. Mas, olhando para um e outra, me espanto: como são parecidos! Hoje encontro gente agradecida ao PT pelos ótimos Bolsa Família, Minha Casa e Prouni, e lembro que só cursei minha faculdade graças ao Crédito Educativo e que minha mãe só comprou nosso apartamento graças ao BNH. Deveríamos ser agradecidos à ditadura? Os dois, PT e ditadura, tentaram diminuir as diferenças sociais por meio de programas, não com mudanças de sistema.

Ambos, PT e ditadura, são desenvolvimentistas, o PAC é o PND. A ditadura fez a ponte Rio-Niterói, a Transamazônica, a Freeway, o Pólo Petroquímico, a Usina de Itaipu. O PT quer fazer Belos Montes, compra usinas no Exterior, duplica a BR-101, planeja a segunda ponte do Guaíba, pretende terminar a transposição do São Francisco. Em Porto Alegre, a esquerda tem feroz apreço pelo 1 milhão e 400 mil árvores da cidade. Destas, 1 milhão e 100 mil foram plantadas na gestão de Socias Villela, prefeito nomeado pela ditadura. Na ditadura, a imprensa era censurada.

O PT sonha com a censura disfarçada pelo “controle social da mídia”. O PT e a ditadura são estatizantes, os dois apostaram na indústria automobilística como pilar de desenvolvimento e tiveram seus empresários-modelo, seja os financiadores da Oban nos anos 70, seja Eike e seus R$ 10 bilhões captados junto ao BNDES nos 2000.

Lula aproveitou o bom momento econômico internacional e fez o Brasil crescer até 7,5%. Semelhante a Médici, que levou o país a 10%. Depois de Médici, assim como depois de Lula, a economia virou. Seus sucessores, Geisel e Dilma, tiveram de enfrentar momentos delicados e um país em princípio de ruptura social. Sarney e Maluf, velhos próceres do PDS, o partido da ditadura, são eleitores entusiasmados do PT, embora Maluf reclame que o PT esteja à sua direita.

No Brasil, esquerda e direita são irmãs siamesas.

Mas nem a esquerda nem a direita aproveitaram seus bons momentos para fazer reformas estruturais. Quanto mais rico fica o Brasil, mais degenerado se torna como nação. Na ditadura e na gestão do PT, o Brasil melhorou para milhões de indivíduos; piorou como país. Foram medidas analgésicas, não curativas. Não por má intenção, diga-se. Houve, sim, vontade de fazer o melhor.


Por isso, não me agradam petistas que não enxergam decência fora do PT e não me agrada quem chama os petistas de petralhas. Melhor seria se compreendessem que tanto à esquerda quanto à direita há gente, muita gente, que quer o bem do Brasil. É este o sentimento mais importante. Porque na prática, como se vê, não faz muita diferença.

quinta-feira, 29 de maio de 2014


29 de maio de 2014 | N° 17811
EDITORIAL

COMO CONTERO BRASILICÍDIO?

O crescimento da taxa de homicídios é o dado mais revelador de que a violência se dissemina sem controles.

O Brasil está diante de um retrato sem retoques de uma de suas mazelas históricas. É o estudo sobre homicídios no país, segundo o qual a taxa de assassinatos em 2012 é a mais alta desde 1980. Foram mortas 56,3 mil pessoas, uma taxa de 29 vítimas por 100 mil habitantes.

É a comprovação da falência das políticas públicas na área da segurança e das deficiências dos planos de prevenção contra a delinquência e até mesmo da insuficiência de programas de transferência de renda. O estudo do Sistema de Informações de Mortalidade, do Ministério da Saúde, confronta os brasileiros com uma realidade que avanços econômicos e sociais não conseguem mascarar e que está a exigir abordagem urgente não só das autoridades, mas de todos os que se dedicam à compreensão dos fenômenos relacionados com a violência.

Não há, no entanto, com o que se surpreender. A pesquisa consolida dados alarmantes, que se repetem ano a ano, e refletem uma realidade que está nas ruas. A sensação de insegurança amplia-se na medida em que o Brasil se transforma num país violento, com índices de homicídio comparáveis aos de cenários de guerra. Somente entre 2011 e 2012, o número de assassinatos cresceu 7,9%.


De cada três crimes, em dois as vítimas são negras. A crueldade que leva a morte, às vezes em circunstâncias aparentemente banais, passa a crescer num ritmo maior em cidades do Interior. As migrações fortalecem e, ao mesmo tempo, degradam novos polos regionais. O tráfico, o acesso a armas, a impunidade e a banalização da resolução de conflitos com mortes são apenas parte das explicações.

29 de maio de 2014 | N° 17811
PAULO SANT’ANA

Enfim, absolvido

Fiquei comovido com o drama de um leitor que foi absolvido no processo da Operação Rodin e quer que todos saibam de sua absolvição porque sofreu muito com a repercussão do fato antes de ser julgado.

Ele praticamente implora para que esta coluna grite aos quatro ventos que ele agora está absolvido e declarado inocente.

Por isso, permitam os leitores que eu dê lugar aqui e agora à ânsia do leitor em divulgar que não tinha culpa nenhuma.

Não é comovente?

Eis abaixo as suas razões:

“Prezado Paulo Sant’Ana. És um excelente jornalista e um tremendo formador de opinião. Por conta disso, tua coluna certamente é uma das mais lidas do jornal Zero Hora.

Sou um dos réus absolvidos no processo criminal oriundo da Operação Rodin e penso que meu grau de inocência no processo pode ser mensurado cotejando-o com o peso das penas aplicadas aos demais acusados.

O ilustre magistrado Loraci Flores de Lima assim se manifestou em trecho da sentença: ‘Aliás, ainda que houvesse alguma prova categórica demonstrando a associação do réu com os outros criminosos, tenho que faltou a voluntariedade, ou seja, o dolo específico de GILSON para o cometimento de crimes.

Vale consignar ainda que absolvi GILSON dos outros fatos delitivos a si imputados (fatos 21 e 29), sendo esta mais uma razão a demonstrar a inconsistência acusatória (Volume 247.pdf, página 224)’.

Por conta disso e do intenso sofrimento vivido por mais de seis anos com a pecha de criminoso, tempo suficiente para que eu me graduasse em Direito e obtivesse a carteira da OAB e para que minha filha entrasse na Faculdade de Arquitetura da UFRGS e concluísse seu curso (além da perda de diversos entes queridos, como o meu pai), peço, respeitosa e encarecidamente que publiques alguma nota ou comentário a respeito da minha absolvição. Cordialmente, (ass.) Gilson Araujo de Araujo”.

Este é o caso de um leitor que pediu a mim um favor e obteve-o ainda maior do que o seu pedido: transcrevi por inteiro seu apelo.

Eu também acho que tem de haver estrépito em absolvições quando há estrépito em acusações.


E fico eu, como colunista, torcendo para que ao ler esta coluna o absolvido vibre intensamente com a repercussão do que publiquei hoje a respeito. Ficarei vaidoso se acontecer isso, vale a pena gastar espaço para proclamar a inocência de um acusado.

29 de maio de 2014 | N° 17811
L.F. VERISSIMO

Loiras

O filme Grace de Mônaco dividiu as opiniões em Cannes. Uns não gostaram e outros odiaram. O correspondente do jornal inglês The Guardian em Cannes chegou a dizer que foi o pior filme jamais mostrado no festival. O filme não é tão ruim assim.

Tem as belas vistas de Mônaco e... Bem, tem as belas vistas de Mônaco. Nicole Kidman está bonita como Grace Kelly, mas botaram para atuar ao seu lado como o príncipe Rainier, na pior escolha de elenco desde que Gerard Depardieu foi um Cristóvão Colombo com sotaque francês tão carregado que você ficava esperando que a reação dele ao descobrir um novo mundo fosse “u-lalá”, Tim Roth, com a sua permanente cara de “alguém deu um pum”. 

Segundo o filme, foi a simpatia de Grace Kelly que impediu a invasão do principado de Mônaco por Charles de Gaulle – que no filme é representado, este sim, por um ator convincente, ou pelo menos com um nariz convincente. Há uma cena em que, participando de um jantar beneficente no principado, De Gaulle sente à sua volta o amor que Grace desperta entre seus súditos e você vê na sua cara toda a política externa da França sendo revisada. Deve ter sido uma das cenas vaiadas em Cannes.

Mas a loira do momento na França não é Grace Kelly, é a Marine Le Pen, depois da retumbante vitória da direita nas recentes eleições de representantes franceses no parlamento europeu. A vitória da direita só não retumbou mais porque não alterou a composição do parlamento francês, onde a Frente Nacional de Le Pen tem escassa representação, não foi acompanhada por uma guinada para a direita tão radical no resto da Europa e todos sabem que a política francesa é ciclotímica, pula da direita para a esquerda e da esquerda para a direita com desenvoltura de macaco.

De qualquer maneira, até avaliação eleitoral em contrário, a Frente Nacional é hoje o maior partido do país. Grande parte do seu sucesso se deve a Marine, mais simpática do que seu assustador pai, Jean-Marie, e que conseguiu transformar um partido xenófobo, racista e antissemita numa opção política palatável, e vencedora.


Discute-se o que é mais perigoso, uma direita dissimulada com boa cara ou uma direita assumidamente carrancuda. O sucesso da loira Marine deve ser visto num contexto bem maior e menos simpático do que ela, de populismo reacionário, de revolta contra imigrantes e de antiesquerdismo primário. Um contexto que se alastra pela Europa toda e agora tem uma vendedora sorridente.


29 de maio de 2014 | N° 17811
ARTIGO ZH - Onyx Lorenzoni*

TERCEIRIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE

Veja você o que disse a presidente Dilma durante anúncio do PAC do Saneamento: “Hoje nós sofremos consequências na área de serviços de decisões tomadas cinco anos atrás”. No desespero de buscar culpados e terceirizar suas responsabilidades, Dilma escorrega e põe no colo de Lula o motivo de seu governo não concluir as obras que anuncia.

O discurso teve um “ato falho”, que acontece quando a gente deixa escapar o que está pensando ou o que deseja esconder. Inúmeras vezes, a presidente Dilma comete esses deslizes, que são tratados pelo lado cômico. Mas a piada (se fosse) é de muito mau gosto.

O PT tem conduzido o país ao passado a passos largos. É uma sucessão de decisões erradas que se somam a um pernicioso desmonte do Estado. Quando as instituições são ocupadas por cargos políticos na escala em que o PT promoveu no país, temos consequências trágicas e visíveis. Os interesses partidários e as alianças políticas são colocados acima do país, a incompetência se instala e se enraíza e a corrupção ganha passe livre.

O partido é colocado em primeiro lugar. E os interesses do povo são tratados com medidas populistas e com muita propaganda. É preciso “convencer” o povo de que as coisas estão boas e isso custou R$ 2,3 bilhões em 2013. Sem levar em conta R$ 1,6 bilhão da Caixa, R$ 1,4 bilhão da Petrobras e R$ 1 bilhão do Banco do Brasil.

A mentalidade socialista não admite instituições que não estejam sob o comando do PT. É dessa forma que eles atacam a democracia. Se o IBGE vai revelar dados que não são bons para o governo, cale-se o IBGE. Se a economia vai mal, invente-se a “contabilidade criativa”, que é o reconhecimento da maquiagem dos números de governo.

Eles usaram o Ipea para desviar a atenção de notícias ruins para o governo. Usaram uma pesquisa de 2013, sem pé nem cabeça, para iludir o país e criar uma falsa polêmica na sociedade brasileira. Um alvoroço diversionista. É nessa lógica do “tudo vale se servir ao partido” que a Petrobras foi arrastada para o ralo e se tornou 10 vezes menor do que era.

É o governo do atraso. Estamos voltando no tempo. Somos cada vez menores com o PT no governo.

quarta-feira, 28 de maio de 2014


28 de maio de 2014 | N° 17810
MARTHA MEDEIROS

Ídolos, uma ilusão de óptica

Certa vez, uma moça comentou comigo sobre a frustração que havia tido. Ela estava num bar em São Paulo com o namorado, quando encontraram um amigo deste, acompanhado de um ator do time dos bonitões da Globo. Ela se beliscou, mas não era sonho. Estava acontecendo. Pra resumir a história, acabaram os quatro na mesma mesa, em função da superlotação do local.

Ela jurou que teria uma noite memorável, e de certa forma teve, mas não exatamente como imaginava. Antes do segundo chope, já estava odiando seu ídolo. Segundo ela, o ator foi grosseiro com o garçom, blasé com uma senhora que o cumprimentou pelo trabalho, não se fixava no que o grupo estava conversando, parecia que estava atrasado para um compromisso bem longe dali.

Quando eu já estava duvidando da história, ela ainda arrematou dizendo que, quando a conta chegou, ele se fez de desentendido. “Será que achou que nós pagaríamos para ele só pela honra de termos sua excelência à mesa?” O ator pagou sua parte, mas o estrago já estava feito: havia perdido uma fã para sempre.

Conclusão dela: “Ídolos, melhor não conhecer de perto. É desencanto na certa”.

Não foi a primeira vez que escutei essa frase. Muita gente prefere manter o mito na cabeça a descobrir que galãs têm seus dias de mau humor como qualquer outra pessoa. E há que se considerar que a moça e o namorado podem ter sido uns malas – todos têm seu dia de mala também. E se passaram a noite fazendo perguntas indiscretas para o cara?

Sei lá.

Só sei que lembrei dessa história quando estive em Juiz de Fora dias atrás, participando de um evento literário. Lotação esgotada, aplausos, autógrafos – ufa, eu havia agradado. Porém, uma estudante se aproximou de mim ao final do bate-papo e me perguntou: posso ser sincera? Gelei. Prenúncio de bombardeio. Então ela disse que era a primeira vez que me via em público e que nunca imaginou que eu aparentasse ser tão... tão... comum (esperava ao menos, tipo assim, uma franja roxa). Disse também que estranhou quando revelei que preferia o dia à noite (cadê as olheiras?).

Que me achou muito afável (“artista que é artista não é simpático, me desculpe”), mas o que mais a impressionou é que eu houvesse sido casada por tanto tempo e que, não sendo mais, ainda desse crédito ao amor. Como assim? Então eu não era exótica, boêmia, vadia? Mas que ídolo de araque eu era, afinal?


Quanta decepção da menina sonhadora diante de uma reles mulher normal. Acabei com suas ilusões pitorescas sobre o estrelato. Quem dera, ela estivesse naquela mesa de bar em São Paulo, onde suas expectativas teriam sido atendidas. Eu deveria ter dito à garota que, às vezes, também pareço estar num lugar, mas não estou. Que de vez em quando me comporto como se estivesse atrasada para outro compromisso bem longe. E que isso também pode ser coisa de gente normal.