Em ruínas, Arroio do Meio vive guerra silenciosa contra o rio no RS: ‘A água comeu a terra
ENVIADOS ESPECIAIS A ARROIO DO MEIO - O silêncio paira sobre
as ruínas do bairro Navegantes, em Arroio do Meio, no Vale do Taquari, quando é
interrompido pelo soluço de Fernanda da Rosa, 32 anos. Como a vítima de uma
guerra, ela caminha pelos escombros de onde um dia viveu, amou e foi feliz. E
chora muito.
“O meu pai construiu essa casa sendo gari, minha mãe fazendo faxina. Criou oito filhos aqui para ir tudo rio abaixo. Tu chegar e ver onde tu te criou, onde brincou na rua, tudo destruído. A água comeu a terra”, diz à reportagem tentando domar o pranto que interrompe sua voz.
Fernanda da Rosa cai no choro ao ver os escombros da casa
construída pelos pais em Arroio do Meio Foto: Wilton Junior/Estadão
Quase tudo em Arroio do Meio é sobre força. A da água e a
das pessoas. A força da água varreu tudo que estava de pé, levou árvores para o
telhado das casas, quebrou postes ao meio, desmontou o bar, a igreja e o restaurante
mais famoso da cidade. A força das pessoas as mantém há 17 dias seguindo em
frente, uma tarefa sobre-humana para quem foi atropelado pela violência da
enchente. Até o momento, a cidade de cerca de 20 mil habitantes não registrou
nenhuma morte. E tem dois desaparecidos. Nesta sexta-feira, 17, o Estadão
presenciou o triste reencontro de Fernanda com os pedaços de concreto que um
dia formaram sua casa.
“Eu tenho que chegar agora e falar para o meu pai e minha
mãe que foi tudo rio abaixo, que não sobrou nada. É guerra isso aqui”, afirma.
Arroio do Meio foi destruída pela força da água; apenas a
parte central da cidade se salvou. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
A “guerra” não é uma expressão da boca para fora. De fato,
uma batalha é travada entre os moradores e os rios da região, o Taquari e o
Forqueta, pelo território. A imagem assusta. Com as chuvas, espremidos no
próprio leito, os rios transbordam e vão varrendo a cidade com força total.
Depois que baixam, o que restam são os escombros no campo de batalha.
Rio Grande do Sul vive a maior tragédia climática de sua história; Arroio do Meio foi uma das cidades mais atingidas pelas chuvas. Foto: Wilton Junior/Estadão
Na terra arrasada, uma pessoa caminha pelo que foi a garagem
de uma loja como se a vida continuasse a mesma. Devanir Pinheiro, de 69 anos,
carrega as feridas dessa guerra: pontos no supercílio e um hematoma no ombro
deslocado. Ele se feriu ao cair de uma escada enquanto tentava colocar alguns
bens no forro de sua casa, na tentativa de preservar alguma coisa. Não
adiantou, a casa veio abaixo, como todas as outras da vizinhança.
“O que (Vladimir) Putin não conseguiu em dois anos na Ucrânia, o rio Taquari fez em 48 horas”, disse à reportagem.
Devanir Pinheiro machucou o supercílio e o ombro ao cair de
uma escada Foto: Wilton Junior/Estadão
Hoje, ele tem sido um morador solitário do bairro
Navegantes. Dorme dentro do carro, na garagem onde improvisou uma mesinha com
frutas, macarrão e outros suprimentos. O radinho de pilha sintonizado na rádio
Independente e seus três cachorros são suas únicas companhias na mudez desta
guerra.
“O pessoal diz: ‘tu tá vivo, cara’. Mas começar tudo de novo
sempre? Dá um tempo”, desabafa Devanir.
O recomeço é uma realidade quase centenária para o casarão
mais tradicional de Arroio do Meio. Em 1941, quando uma enchente histórica
atingiu o Estado, os avós de Rodrigo Schneider compraram a casa às margens do
rio Taquari por um bom preço. Depois, nos anos 1950, no local, além da moradia
da família, passou a funcionar a “Casa do Peixe”, que se tornou o restaurante
mais tradicional da cidade e viveu longos anos de paz até que as mudanças
climáticas trouxeram a guerra novamente.
Na manhã desta sexta-feira, a terceira geração da família
trabalhava para limpar a casa. Com paredes robustas, a estrutura principal foi
mantida, mas não conseguiu preservar o que estava dentro.
Algumas casas resistiram à força da água e não foram
derrubadas, mas ficam destruídas em Arroio do Meio Foto: Wilton Junior/Estadão
Algumas casas resistiram à força da água e não foram
derrubadas, mas ficam destruídas em Arroio do Meio Foto: Wilton Junior/Estadão
Nós dizíamos que uma enchente como a de 1941 a nossa
geração não veria, e aí dessa vez a enchente tapou o segundo andar. São coisas
que a gente não pode comprar com dinheiro, memórias, documentos, livros, fotos,
partituras, os dois pianos que se foram. Não é uma vida, são três gerações que
se foram”, conta Rodrigo Schneider, 34 anos.
A cidade flagelada pelas cheias vive a escassez em mercados que antes tinham variedades, mas agora têm dificuldade em abastecer devido à queda de pontes e estradas. No início da semana, as Forças Armadas construíram uma ponte estreita para que os habitantes de Arroio do Meio consigam ir para o município vizinho, Lajeado, que também foi atingido.
Ponte improvisada pelas Forças Armadas permite que
habitantes de Arroio do Meio consigam ir para Lajeado Foto: WILTON
JUNIOR/ESTADÃO
Ponte improvisada pelas Forças Armadas permite que
habitantes de Arroio do Meio consigam ir para Lajeado Foto: WILTON
JUNIOR/ESTADÃO
Na passadeira sobre o rio Forqueta, histórias cruzam de um
lado para o outro. Pessoas em luta contra o câncer que precisam sair da cidade
e vencer o rio em busca de tratamento; famílias que precisam entrar para ajudar
parentes que perderam tudo; exames de sangue colhidos em Arroio do Meio que
precisam ir a Lajeado para serem analisados.
Ao longo do dia, a estimativa é de que cerca de 5 mil
pessoas passem por ali. O ritual lembra corredores humanitários em guerras: uma
fila com as mais diversas pessoas, algumas que estão ali para ajudar e
transitam com remédios e comidas; outras que precisam sair para resolver as
próprias urgências. Para passar, todos colocam coletes salva-vidas e são
autorizados por militares a cruzar a ponte aos poucos. A rotina em nada se
parece com a calma das cidades interioranas.
Corredor humanitário': cerca de 5 mil pessoas passam
diariamente pela ponte improvisada Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
Refúgio na praça
Em Arroio do Meio, a praça central, que costuma ser o
coração dos pequenos municípios, foi o refúgio da família Cardoso. Após terem
suas casas tombadas, 11 pessoas moram onde nos tempos de festa funcionava a
casinha do Papai Noel.
“Por cinco dias a gente, em 11 pessoas, ficou dormindo num colchão,
porque a gente pediu doação, mas ainda não estava liberada”, relata Sabrina
Cardoso.
Ela reclama que a falta de informações sobre os benefícios
das famílias daqui para frente também é um problema que aprofunda a dificuldade
de lidar com a situação. No meio de tanta tristeza, o peito de Sabrina fica
mais apertado quando vê a reação das crianças da família. Ela conta que o filho
mais velho, que tinha ganhado recentemente o próprio quarto, está desolado.
“Ontem mesmo ele colocou um status no celular dizendo que
estava sem chão e não sabia para onde ir. Ele tem 11 anos. Meu bebê de 7 meses
sente. Para o meu sobrinho de três anos a gente diz que aqui onde a gente mora
é a casinha do Papai Noel”, diz. “Até então não tinha caído a ficha dele que a
gente tinha perdido tudo. Ele ainda aqui na praça me perguntava: e nossas
coisas? A gente vai conseguir voltar para casa? E a gente tinha que confortar
ele, dizer que não ia poder voltar para essa, mas que uma hora ou outra a gente
ia conseguir um lar.”
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