15 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR
Bacia das almas
No Rio Grande do Sul, choveu em duas semanas o equivalente a seis meses. Pela primeira vez na nossa história, a enchente atingiu todo o Estado. Noventa por cento dos municípios afetados pelas cheias já haviam decretado situação de emergência ou de calamidade ao menos uma vez desde 2013. Mas jamais tinha acontecido um desastre climático que eclodisse simultaneamente no nosso mapa inteiro (em 450 das 497 cidades), desencadeando meio milhão de desabrigados, apagão de energia elétrica, desabastecimento de água, racionamento de produtos, bloqueio de pontes e estradas.
E nada está sob controle. O Rio Guaíba segue em elevação, seu pico de 5m35cm deve ser ultrapassado. O Canal São Gonçalo, em Pelotas, que deságua na Lagoa dos Patos, bateu a marca de 2m88cm, o mesmo nível da enchente de 1941. O Rio Taquari, que deságua no Guaíba, ultrapassou os 27 metros. O Rio Caí permanece acima da cota de inundação.
Todos que vieram de longe e estão nos ajudando já são gaúchos honorários. Sejam do Exército, sejam do Corpo dos Bombeiros, sejam policiais, sejam médicos, sejam voluntários. São botes de esperança em nossa bacia de almas.
Uma das histórias mais tristes e emocionantes é a do cardiologista Leandro Medice, de 41 anos, que percorreu 2 mil quilômetros, de Vila Velha (ES) a São Leopoldo, para salvar pessoas que nem conhecia, usando sua experiência como intensivista no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), e acabou morrendo de mal súbito durante sua missão nesta segunda-feira.
Ele abandonou sua clínica, seu casamento, sua comodidade, encarnando o juramento de Hipócrates: "Prometo solenemente consagrar a minha vida a serviço da humanidade. Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação".
Não sabemos ao certo quantas existências ele curou, medicou, poupou do sofrimento, quantos resgates fez, a quantos idosos e crianças deu alento e coragem. Não há como quantificar a solidariedade, pois somamos as perdas, jamais as vidas salvas. Mas é certo que ele se dedicou tanto que não resistiu ao esgotamento físico e emocional.
Na catástrofe gaúcha, o ambiente é asfixiante, próprio de uma guerra, com salvamentos consecutivos e contínuos, sem pausa, sem trégua. Cidades inteiras foram invadidas pelas águas, desprovidas de tempo para evacuação. Milhares de moradores se perceberam ilhados em seus telhados, esperando socorro.
Leandro só pensou em ajudar. Não pensou em si. Em seu vídeo de despedida, disse: "Ei, pessoal! Hoje eu estou fazendo uma coisa diferente. Pela primeira vez, eu vou partir para uma missão humanitária. O Sul está precisando da gente. Então, saí um pouco da minha rotina, do conforto do consultório. A cirurgia acabou agora há pouco, a gente já emendou. São 4h da manhã agora. A gente está indo pra lá ajudar os nossos irmãos que estão precisando".
Seu anonimato é heroísmo. Queria dar colo a irmãos que nunca viu pela frente: estranhos irmãos, estranhos íntimos. Ele não tinha nenhum parentesco, nenhum familiar por aqui. Veio unicamente por vocação. Veio porque não poderia ser indiferente ao sofrimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário