Martha Medeiros
Torço para ainda ser a titular dessa coluna semana que vem
Não têm sido dias fáceis, e como se fosse pouco, uma enchente devastou meu Estado. Como é que não tem nada para dizer, criatura?
Às vezes, é justamente no meio de uma hecatombe que você fica sorumbática, catatônica.
O que acontece quando você tem que mandar a sua coluna para o jornal e está sem inspiração para escrevê-la? Não sou de me gabar, mas a resposta costumava ser: tranquilo, sempre tem algum texto que escrevi no passado e que não publiquei, é só abrir a pasta dos inéditos, tirar o pó e jogar para o universo.
Essa mulher imperturbável está com os dias contados. Deu-se o inesperado: estava diante da tela em branco e nada me ocorria, o que era estranho, venho de um tsunami emocional atrás do outro, não têm sido dias fáceis, e como se fosse pouco, uma enchente devastou meu Estado. Como é que não tem nada para dizer, criatura?
Ideias, ideias, aceitando doações. Volte a adotar um tom político e combata o negacionismo climático e as fake news, meta o pau, você anda muito boazinha. Conte como é ver o rio lamacento submergindo os móveis das casas e um helicóptero a cada cinco minutos sobrevoando o céu da cidade. Redefina glamour: descer e subir pelo elevador do seu prédio carregando baldes e tomar banho no clube por não ter abastecimento de água em casa. Dias de fúria: supermercados transformados em selvas, com clientes de dentes arreganhados lutando pelo seu pedaço de carne, sua fruta estragada e 500ml de água potável.
Exalte os cães e gatos resgatados, e os cavalos que aguentaram firme em cima de telhados ou que subiram até o terceiro andar de um edifício residencial: enfim, a revolução dos bichos. O mutirão solidário que se formou em todo o país, nós que tínhamos certeza de que o Brasil era um caso perdido. Como não tem assunto? E nem estamos forçando você a contar sobre sua vida pessoal, garanto que o tal tsunami renderia parágrafos perturbadores, gostamos de desgraça, vamos, conte, conte, você é paga para isso.
Se fosse só este o motivo do meu pavor — ser paga e não ter o que entregar —, mas o caso é mais grave. Às vezes, é justamente no meio de uma hecatombe que você fica sorumbática, catatônica. Mas tem a pasta dos textos inéditos, ahá! Eu já estava com a flanela na mão para tirar o pó de um deles, mas comecei a ler todos e nenhum prestava, nenhum servia, parecia um filme de terror, o William Bonner deveria ter voltado ao Sul para apresentar o JN de dentro do meu escritório. A situação só piorava.
Se acha que essa história terá um final feliz, pode tirar o cavalo da chuva (será uma expressão apropriada?). Eu não consigo mais me ler. Você já se sentiu assim? Querendo reescrever a sua história desde o início, fazer uma revisão biográfica da sua narrativa, que ficou amarelada pelo tempo? Você ainda é você?
Deve ser consequência das mudanças todas, internas e externas. Elas reviram a gente, e o que deu para entregar foi isso. Torço para ainda ser a titular dessa coluna semana que vem.
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