Uma família inteira sem nada
O que muitos não imaginam é que a enchente, num efeito dominó, pode ter levado as casas de uma família inteira, pois seus integrantes faziam questão de morar próximos uns dos outros.
Oito residências da família Moreira, em Canoas, no bairro Rio Branco, submergiram. Ninguém ficou imune. Três diferentes gerações foram afetadas pelo maior desastre ambiental da história gaúcha. Estão desalojados desde o menino Rael, de três anos, até o patriarca Moacir, de 77. São 40 pessoas que deram duro na vida, e agora se percebem sem chão, sem lar, com o mesmo sobrenome e o mesmo destino de abandono.
É a segunda vez na história da família que ela é expulsa de seu endereço. Nos anos 1970, a rua que habitava, São Jorge, no bairro porto-alegrense Navegantes, acabou sendo desocupada pela prefeitura. Tiveram que vencer a fome e a miséria, e recomeçar o sonho em Canoas.
"O que mais dói é a pureza das crianças, que acham que estão brincando de acampamento e não têm noção de que não há um lugar para voltar", diz a jornalista Flávia Moreira, de 42 anos.
As construções permanecem cobertas pelas águas, com pertences e mobiliário perdidos. Só os telhados se mostram visíveis. Os moradores não conseguiram retirar coisa alguma na evacuação, não houve toque de recolher. Partiram com a roupa do corpo.
O terror começou no dia 3, na descrença da cheia. Moacir avisava: "Inunda, mas não chega aqui". Acreditava-se que seria um alagamento de avenidas como de costume, jamais de casas. De madrugada, com a correnteza do Rio Gravataí na altura da cintura, mudou-se desesperadamente de perspectiva.
Todos precisaram sair. Por três dias consecutivos, os mais jovens se revezavam para nadar entre os escombros, salvar os vizinhos e colocá-los em segurança nas passarelas. Ninguém pensou em resgatar objetos pessoais. Ninguém pensou em geladeira, fogão, televisão, mesas, roupas, brinquedos, memórias.
"Fica-se com saudade dos dias ruins, das brigas, das discussões, de estar junto e protegido. Nada é pior do que esse desamparo", comenta Flávia.Uma das residências tombadas pela enchente servia de ponto de encontro obrigatório da família no Réveillon nos últimos 40 anos.
"Não dá para projetar tão longe, um dia de cada vez. Mas esperamos não mudar a nossa tradição. Certo é que estaremos juntos, não sabemos onde", afirma Flávia.
Dos 350 mil habitantes de Canoas, 225 mil viram sua rotina profundamente alterada. Tanto que, a cada quatro desabrigados no Rio Grande do Sul, um é de lá - foram inundados 60% dos 131 quilômetros quadrados da terceira cidade mais populosa do Estado, o equivalente a uma extensão de quase 11 mil campos de futebol.
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