13.mai.2024 às 12h30
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Alcoolismo não é uma doença qualquer: é pior
Há a negação e a tristeza camuflada em sorrisos; eu bebia como se não houvesse amanhã, e no amanhã queria apagar o ontem. Hoje eu acordei com fome e corri para preparar meu café da manhã. Fiz umas torradas e dois ovos. Botei a água pra ferver e separei a xícara amarela grande.
As minhas manhãs se transformaram em um ritual bonito na recuperação do alcoolismo. Há pouco mais de duas semanas, porém, eu peguei uma virose e meu corpo ficou muito fraco e eu, enjoada. Não tinha ânimo nem vontade de me alimentar. Fiquei deitada grande parte do tempo, com a pressão constantemente baixa. Me sentia estranha, com medo, desanimada. Dormia em momentos os mais diversos. Os dias e as noites se tornaram iguais.
Parei de trabalhar, não conseguia mexer no telefone nem ouvir qualquer som, tudo me incomodava. Irritava. As pernas ficaram inquietas e ao mesmo tempo pesadas. Não tive um diagnóstico fechado e isso me remeteu aos tempos de bebedeira, quando eu não sabia muito bem qual era o meu problema ou não queria enfrentar a sentença do alcoolismo.
Vivia em estado de fraqueza, mas não deixava de beber. Afinal, meus exames estavam ótimos. Esse era meu azar. Eu acordava querendo dormir de novo, abria os olhos e pensava como eu poderia me entorpecer. Minha cabeça doía. No final do meu alcoolismo, eu bebia pouco e já ficava bem alterada. Chorava. Vomitava, ficava abraçada à privada esperando algum milagre acontecer.
Não tinha mais nada para fazer, não me interessava por nada. Havia perdido os amigos, meus familiares não me suportavam e eu mesma tinha ódio de mim. Às vezes acontecia de algum vizinho bater na minha porta para pedir um ovo, uma farinha… Realmente ninguém tinha noção do que se passava entre as minhas quatro paredes. Minha casa era um acampamento. Passei sete anos sem trocar o botijão de gás. Não era uma casa, não tinha cheiro de casa, não tinha vida. Só a sobra de uma mulher.
Eu estava doente e minha condição só piorava, parecia que eu não queria me tratar' - Kislinka_K/Adobe Stock
Era um estado de violência contra mim. Eu estava doente e minha condição só piorava, parecia que eu não queria me tratar. As pessoas falavam: Você precisa reagir, ter força de vontade. Mas quando essas palavras entraram no meu vocabulário, eu já não tinha mais alma para conversar. Sabe aquela música? Tudo era apenas uma brincadeira e foi crescendo e crescendo, me absorvendo? E eu fui me sentindo assim completamente seu? O meu relacionamento com o álcool foi assim. Sorrateiro. Chegou como esse bichinho que se instalou no meu corpo durante duas semanas. Num dia eu estava comendo, no outro eu já estava mal. Eu não tenho ideia de quando me tornei alcoólatra, mas sei quando comecei a virar o jogo.
Como aconteceu hoje de manhã, quando a fome bateu e eu fui rápido preparar meu café. Eu acordei diferente. É o começo de mais uma recuperação e mais uma vez escrevo feliz por estar viva e com vontade de viver. Com fome! Fome é uma bênção. Eu tinha até programado uma viagem meio a trabalho, meio a lazer, e estava desistindo porque comecei a me sentir insegura. Claro, Alice, me alertou uma amiga que vou encontrar, quando a gente está doente, tudo que queremos é nossa casa.
Dessa vez eu quero muito a minha casa, fico com medo de viajar e deixar meu cachorro, mas quando eu estava alcoolizada, eu não queria ficar em casa, não queria cuidar da minha casa, não queria comer, não cuidava do meu corpo. Mas não sei bem se a palavra seria querer.
A doença do alcoolismo não é como uma outra qualquer, como já disse várias vezes aqui. Eu queria dizer que é preciso tratar o alcoolismo como uma doença, mas hoje sei que é pior. Muito pior. Porque tem a negação. Tem uma falsa alegria, tem a doença camuflada em uma festa, em sorrisos. Quantas vezes bebi sem querer beber e depois já estava engatando uma na outra? Bebia como se não houvesse amanhã e no amanhã tudo que eu queria era apagar o ontem ou correr para o depois. Aos vinte e poucos anos eu conseguia até manter uma pose, aparecer com a pele bonita no dia seguinte. Mas aos trinta eu já dava sérios sinais de esgotamento.
Sinto o cheiro da torrada e curto o aroma do café enquanto escrevo. O dia está bonito e eu estou disposta. Meu email pula com o resultado do meu exame de sangue de hoje. Junto com ele, chega a mensagem do meu médico: Seu corpo está respondendo, você entrou na fase da recuperação, vai poder viajar tranquilamente.
Lembro como é bom ser feliz, como é bom ter fome e como foi importante eu ter me exposto naquela sala de AA: Eu sou Alice, sou uma alcoólatra. A partir dessa minha aceitação, da verbalização de que minha doença era o alcoolismo, eu passei a imitar as pessoas que são alcoólatras e vivem bem. Passei a dar importância para os rituais como os da manhã: acordar, arrumar a cama, abrir a janela!! Ver o dia que nasce.
Tem uma coisa muito ruim para mim: eu não tenho cara de alcoólatra. Quer dizer, é claro que isso é bom, mas por outro lado todo mundo fica me oferecendo uma bebida, insiste para eu tomar um copo. É difícil convencer alguém que sou alcoólatra.
Mas na verdade eu não preciso convencer ninguém, mesmo porque não tenho um exame com o diagnóstico. Só sei que tenho uma vida tranquila e serena sem a bebida. E sou bonita. Nada parecida com aquela bêbada que ninguém queria ver por perto.
O segredo é que eu sei o que a bebida foi capaz de fazer comigo e com as pessoas ao meu redor. Por isso eu preciso fazer meu tratamento. E o milagre aconteceu porque eu não uso maquiagem para o alcoolismo.
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