terça-feira, 28 de maio de 2024


28 DE MAIO DE 2024
NÍLSON SOUZA

Nossa casa

Moro na Zona Sul, em lugar aparentemente seguro, mas passei a infância e a adolescência no bairro Sarandi, um dos mais atingidos pela enchente apocalíptica que arrasou metade do Estado e comunidades inteiras na Capital. Uma delas foi a Vila Elizabeth, que ficou praticamente submersa, especialmente na parte mais próxima do dique de proteção que extravasou e apresentou rupturas.

Exatamente naquela área da Zona Norte, passei muitas tardes de domingo correndo atrás de uma bola no campo do Grêmio Esportivo Continente, clube amador fundado na década de 1960 e que existe até hoje. Éramos um dos times mais modestos da antiga Liga Sarandiense de Futebol, mas enfrentávamos os grandes com tanta determinação que dificilmente perdíamos pontos nos nossos domínios.

- Aqui é a nossa casa! Nada pode nos abalar - costumava dizer seu Paulo, o treinador, na sua breve preleção.

O Continente tinha - e tem - uma casa, ainda que sua sede e seu gramado estejam encobertos pela água. Não é a primeira vez. Em outras temporadas chuvosas, o campo também alagou, mas isso nunca impediu que várias gerações de atletas amadores continuassem defendendo com bravura o escudo verde e vermelho, com o mapa da América do Sul.

O bairro da minha infância é quase um continente na geografia da cidade. No Sarandi, entre os arroios Feijó, Sarandi e o Rio Gravataí, residem mais de 100 mil pessoas - predominantemente trabalhadores, operários, costureiras, pequenos comerciantes, estudantes, a maioria gente humilde, que enfrenta adversidades cotidianas para sobreviver. 

Pensando neles, senti uma dor infinita quando vi aqueles barcos de salvamento percorrendo as ruas da Vila Elizabeth para retirar moradores e animais ilhados. Sei que é apenas um recorte do desastre climático que provocou mortes e destruiu cidades inteiras no Estado, mas é naquele cantinho do mundo que estão alguns dos meus parentes, muitos rostos conhecidos e parte de minha própria história. A proximidade dói mais.

Porém, também é lá que concentro minha certeza na resistência e na superação do nosso povo. Conheço aquela gente. Sei que, tão logo a água baixar, aquelas pessoas valentes vão voltar para seus lares, remover a lama, limpar o que ainda puder ser aproveitado e retomar a luta diária pela vida. Talvez porque não tenham outra alternativa. Mas, principalmente, porque é a casa delas.

E na nossa casa, como dizia seu Paulo, nada pode nos abalar.

NÍLSON SOUZA

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