24 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR
Tocando o barco
No Rio Grande do Sul, voltou-se a adotar a antiga expressão "tocando o barco" para responder a "tudo bem?". Lembro que meus avós a usavam, e ela se encontrava perto da extinção em nossa linguagem corriqueira.
O arcaísmo tornou-se neologismo. Talvez porque a enchente tenha trazido o barco como personagem principal da cidade, como único meio de transporte nas áreas alagadas, enquanto as carcaças dos carros seguem submersas. E porque é uma forma educada e polida de dizer que não está tudo bem, evitando entrar em pormenores e cair no desabafo.
"Tocando o barco" é menos desânimo e mais frustração diante do desamparo do comércio desalojado e das famílias desabrigadas. Exige-se um malabarismo do gaúcho na calamidade, uma arte de equilíbrio quase impraticável: conservar a saúde mental sem ficar insensível, lamentar as perdas sem ser tragado pelo pessimismo, segurar a fé sem parecer ingênuo.
Deve-se continuar trabalhando apesar da anormalidade do entorno. Deve-se ouvir as tristes confidências dos amigos e jamais sucumbir, mantendo a firmeza do incentivo. Deve-se repor a ordem, contabilizar os prejuízos, e não ansiar pelo orçamento no fim do mês.
É andar o dia inteiro na corda bamba entre a razão e a emoção, cuidando para não pender para o lado do completo ceticismo ou para o lado da insana alienação. Não dá para sorrir na rua, senão vira deboche. Não dá para chorar escondido, senão não se para mais.
Nunca vivemos tamanha contenção de nossos sentimentos, para nos mostrarmos realistas, e ainda assim esperançosos.
"Tocando o barco" acaba sendo uma metáfora de que todos foram afetados de algum jeito pelo maior desastre ambiental da história gaúcha. Ou pela violência das águas, ou pelo terror dos efeitos de racionamento e apagão das cheias. Ou porque foram vítimas diretas, ou porque acompanharam familiares e pessoas próximas em situação de perigo.
Todos estão no mesmo recomeço. Todos estão com saudade da vida que tinham. Todos estão angustiados com o futuro. Todos estão em alerta, esperando um abraço para fechar os olhos e deixar de ver um pouco a catástrofe.
Todos têm um luto: de um amor, de uma amizade, de um pet, de uma cidade, de um Estado. Todos são testemunhas do sofrimento.
Quem perdeu tudo, quem deu tudo, quem padece de dor, quem padece de pena, quem procura culpados, quem se sente culpado, quem não tem mais casa, quem acolhe parentes em sua casa, quem não tem luz, quem não tem água, quem não acredita em milagres, quem acredita em Deus, direita e esquerda, ricos e pobres, lacônicos e dramáticos, intensos e frios, todos estão tocando o mesmo barco. E precisamos avançar, só isso nos cabe: avançar. Ninguém pode pular agora.
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