sábado, 8 de julho de 2023


CARPINEJAR

Te ato, te amo, Zé!

Com seus cabelos brancos espetados, o olhar estatelado, vestindo costumeiramente batas leves, Zé Celso Martinez Côrrea era um profeta do teatro brasileiro. O que ele produzia no seu Grupo Oficina correspondia à seta de uma bússola: a nova direção a ser tomada pelos artistas dali por diante. Antecipava tendências.

Morreu, então, o nosso futuro. O dramaturgo, diretor e ator partiu nesta quinta-feira, na capital paulista, aos 86 anos, vítima de sequelas de um incêndio em seu apartamento.

Zé Celso ultrapassava os estereótipos limitantes e caricaturais de excêntrico, de exótico, de libertário. Deve ser lembrado unicamente como gênio. Mostrava-se escandaloso e desprovido de amarras como todo gênio. Jamais conheci um gênio discreto.

Emanava dele um desbunde de erudição, de conhecimento de palco e de encenação. Adaptou Esperando Godot, de Samuel Beckett, para os nossos confinamentos ideológicos, jogou ao vento as velas enfunadas de Oswald de Andrade, transformou o teatro da crueldade do francês Antonin Artaud num circuito da provocação emocional, sensorial, da transcendência.

Ele acabou com as fronteiras entre ribalta e plateia. Incitava o público a atuar, a exorcizar os seus preconceitos, a se engajar no protesto. Não havia nenhuma passividade de recepção. Você pagava ingresso para contracenar, para ter a sua intensidade de volta, para recuperar o gosto de se sentir vivo. Ninguém tinha ideia ou segurança do que viria a ocorrer nas suas improvisações motivadas pelo afeto. No fim de cada peça, existia a dança tribal, a celebração hedonista do convívio, reatando as pontas do espectador com a pulsão primitiva da alegria da infância.

Chegou a batizar esse movimento de interação de "te-ato".

Em 1974, Zé Celso partiu para o exílio em Portugal, após ficar detido por 20 dias e ser torturado pelo regime militar.Ficou conhecido como bastião da resistência à censura por dirigir o histórico espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque. Sua última apresentação foi justamente em Porto Alegre (1968).

Debochava da política e do comportamento subserviente de Terceiro Mundo, jamais se esquecendo de pincelar a sátira com lirismo e personagens estranhos.

Não suportava o otimismo dos filmes da Atlântida, as comédias exageradas de costume e o tom das óperas bufas do nacionalismo sem nenhuma verdade social.Serviu a sobremesa da antropofagia, aprofundando as pesquisas sobre a brasilidade da Semana de Arte Moderna.

Se a antropofagia consistia em digerir a cultura estrangeira para assim não imitá-la (o que explica a natureza metafórica da palavra "antropofágico"), acrescentando no caldo a cultura afro e a dos povos originários, Zé Celso rompeu de vez com o padrão europeizado e americanizado de espetáculo.

O que ele fazia estava próximo de um transe, invocando Dionísio, o deus grego do vinho e das festas. Combatia o moralismo e o conservadorismo com a naturalização da nudez em cena.

Caracterizado pela iconoclastia, paradoxalmente tornou-se o realizador cultural que mais nos presenteou com um legado. Desde 1982, o seu Teatro Oficina é tombado como patrimônio histórico. A construção, projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que também assina o projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp), assumiu um destaque de ponto de referência para estudantes de artes cênicas no país, quase uma universidade gratuita da vida real. Em 2015, o jornal britânico The Guardian considerou o prédio como o melhor projeto arquitetônico do mundo.

O futuro encarnado em Zé Celso nos deixa um colossal passado.

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