domingo, 8 de outubro de 2017


A australiana Melbourne mostra a receita do bem-estar

Nos anos 80, a cidade de Melbourne era tida como inabitável. Agora é a melhor do mundo para viver e se prepara para dobrar de tamanho até 2051

O passatempo do fim de semana para boa parte dos 4,5 milhões de moradores de Melbournea segunda maior metrópole da Austrália, é flanar nos arredores da Federation Square, uma praça de 32.000 metros quadrados em frente à maior estação de trens e bondes da cidade. Ali fica a National Gallery of Victoria, um museu que recebe 4 milhões de visitantes por ano com exposições nacionais e internacionais.
Na tarde de sábado, 23 de setembro, quando EXAME esteve ali, visitantes faziam fila para ver 140 vestidos de alta-costura produzidos pela casa francesa Dior nos últimos 70 anos. A poucos metros, cerca de 200 torcedores sorviam litros de cerveja enquanto assistiam, num telão de 10 metros, à vitória do time local Richmond Tigers na semifinal da primeira divisão do futebol australiano (um esporte local que lembra remotamente o rúgbi), disputada a 1 quilômetro de distância, na Arena de Críquete de Melbourne.
O acesso à internet é gratuito, por cortesia da prefeitura, e de alta velocidade. A tecnologia costuma atrair multidões de adolescentes, com celulares à mão, para assistir a séries ou jogar online enquanto curtem o movimento da praça ou beliscam algo — há mais de 3.500 cafés e restaurantes no entorno, uma das maiores concentrações gastronômicas do mundo. Mover-se a partir da praça é fácil: desde 2015 não há cobrança de tarifa nos bondes que cruzam a região central.
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A inauguração da Federation Square, em 2002, marcou uma guinada na história de Melbourne. Após décadas de decadência urbana, a cidade investiu em espaços públicos e flexibilizou as regras para incentivar a vinda de moradores para a área central. As pessoas passaram a ocupar novamente as ruas, aumentando a sensação de segurança, gerando negócios e aproveitando melhor as escolas e os hospitais que a região já tinha. O resultado: desde 2011, Melbourne foi eleita sete vezes a melhor cidade do mundo para viver pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit, ligada à revista The Economist.
Na última edição do ranking, divulgada em agosto com avaliação de 140 metrópoles, Melbourne recebeu média de 97,5 pontos, de um total de 100 possíveis, em cinco quesitos: infraes-trutura, educação, saúde, cultura e segurança. É um desempenho bem melhor do que o das cidades brasileiras avaliadas: o Rio de Janeiro, em 90o lugar na pesquisa, fez 69 pontos; São Paulo, em 94o, atingiu 68.
A receita de Melbourne para superar a decadência tem servido de inspiração para gestores públicos brasileiros. Segundo EXAME apurou, o prefeito de São Paulo, João Doria, deverá visitar a metrópole australiana em fevereiro para ver de perto a receita de uma cidade com alta qualidade de vida. Desenvolvimento:Saiba por que precisamos de cidades inteligentes e como podemos criá-las Patrocinado 
Bairro de Docklands: a iniciativa privada transformou uma área degradada numa das mais valorizadas da cidade | Steve Daggar Photography/Getty Images
MIGRAÇÃO PARA OS SUBÚRBIOS
Uma primeira lição de Melbourne vem da capacidade de consertar o próprio rumo. Fundada em 1835, a cidade foi desenhada para facilitar o fluxo de pessoas e riquezas, servindo de base para a exploração de reservas de ouro abundantes na região. Até hoje, a maioria das vias segue um traçado em que avenidas com mais de 10 metros de largura, dedicadas ao tráfego intenso, cruzam becos e ruas estreitas, mais restritos aos moradores.
Desde 1884, nessas avenidas passam bondes que ligam a cidade de ponta a ponta. Com 250 quilômetros, a rede é a maior do mundo. A boa infraestrutura, uma novidade no século 19, aliada à qualidade de vida dos moradores, fez a cidade ser apelidada de “Melbourne Maravilhosa” — slogan ainda lembrado por muitos moradores. Mas a popularização dos carros após a Segunda Guerra Mundial deu motivos para a construção de milhares de casas em subúrbios.
A cidade hoje se espalha num diâmetro de 100 quilômetros e transferiu a vida social do centro para shoppings e clubes distantes. O espaço da Federation Square era um enorme fosso ocupado por trilhos dos trens suburbanos. As vielas nos arredores viviam sujas e abandonadas. Por um bom tempo, a degradação fez os jornais locais trocarem a designação carinhosa por uma pejorativa: “9 to 5 city” (isto é, a cidade que funciona das 9 da manhã às 5 da tarde).
Acelerador de partículas: tecnologia inovadora nos arredores da cidade
A virada começou na década de 90. O passo mais importante para a revitalização foi a valorização do centro da cidade — um desafio que as grandes cidades brasileiras têm enfrentado com frequência, e basicamente ainda sem solução. A primeira medida foi uma força-tarefa da prefeitura para acelerar a concessão de alvarás para negócios e para reformas de prédios abandonados. “A análise dos processos é a prioridade de nossos técnicos”, diz Robert Moore, diretor de projetos da prefeitura de Melbourne.
Além da via expressa, os interessados em migrar para o centro têm até hoje descontos num imposto de 5% sobre o valor da propriedade cobrado nas transações imobiliárias em solo australiano. As vielas receberam investimentos em calçamentos mais largos, para privilegiar o uso por pedestres e bicicletas. “Os investimentos em novos espaços públicos, como a Federation Square, só coroaram uma política pública consistente de atração de pessoas para o centro”, diz o urbanista Donald Bates, da Universidade de Melbourne, responsável pelo projeto da praça.
O resultado: o número de moradores do centro de Melbourne passou de meros 700, em 1980, para 38.000, neste ano. Os empregos na região cresceram 43%, taxa acima da média na cidade, de 29%. Hoje, é difícil achar um espaço vazio em meio à profusão de bares, cafés e restaurantes nas ruas estreitas do centro, que costumam lotar na saída do expediente e nos fins de semana. “A região é a mais desejada pelos varejistas em Melbourne”, diz Gilbert Rochecouste, fundador do Village Well, consultoria para o varejo.
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Um fator importante para a revitalização de Melbourne foi a parceria de gestores públicos com o setor privado, algo que os municípios brasileiros começaram a fazer durante a crise econômica recente para fechar as contas, não sem receber uma saraivada de críticas. Em Melbourne, há duas décadas, sucessivos governos, de orientações ideológicas distintas, adotaram uma agenda ambiciosa de entregar à iniciativa privada a gestão de bens públicos como estádios, teatros, museus e pavilhões de exposições.
O autódromo de Albert Park, sede do Grande Prêmio de Fórmula 1 da Austrália, e a Arena de Críquete são geridos desse jeito. Com a iniciativa privada colocando a mão na massa, houve uma abundância de eventos que transformaram Melbourne no maior destino turístico australiano: nos últimos 12 meses foram 2,8 milhões de visitantes, o dobro de 2010. Uma região inteira, Docklands, antiga área portuária de 3 quilômetros quadrados, foi convertida num bairro residencial e comercial pelas mãos da iniciativa privada, que aportou 10 bilhões de dólares ali.
Melbourne também seguiu uma receita clássica para se desenvolver: investiu em faculdades de excelência. A Universidade de Melbourne é a 32a melhor do mundo. O Synchrotron, acelerador de partículas que desde 2007 já realizou 7.000 testes de moléculas em pesquisas de materiais para empresas australianas, está a 22 quilômetros de Melbourne.
Nas arborizadas ruas de Parkville, bairro a 15 minutos de carro do centro da cidade, num raio de 500 metros estão oito dos 100 maiores centros de pesquisa médica do mundo. “Dá para visitar todos a pé antes mesmo de esfriar o café”, diz Krystal Evans, presidente do BioMelbourne, associação de empresas locais de biomedicina que reú-ne 188 membros. O resultado é que estudantes do mundo inteiro vão estudar na cidade.
No total, 30% dos estudantes universitários de Melbourne são estrangeiros, a maioria jovens asiáticos de alta renda. Na Swanston Street, a principal rua comercial, é mais fácil encontrar um lugar que sirva um prato de noodles do que uma confeitaria que venda uma pavlova, torta de morango que virou típica do país.
Os benefícios de uma ótima qualidade de vida não são apenas medidos no dia a dia dos moradores. Um local reconhecido como bom de viver atrai profissionais talentosos — e empresas interessadas em contratá-los. Com isso, as cidades acabam criando polos de excelência. No caso de Melbourne, um deles é o de economia criativa. Quase 5% da mão de obra da cidade está no setor — praticamente o dobro da média de cidades brasileiras.
A facilidade de contratar gente nessa área fez com que o escritório de design Hassell, fundado em 1938, na também australiana Adelaide, e recentemente listado como um dos 25 maiores do mundo, tenha em Melbourne um dos principais de 12 escritórios. “A abundância de bons profissionais faz o trabalho aqui ser mais produtivo”, diz Andrew Low, diretor do Hassell. O saldo é de ganhos na economia inteira. De 2001 a 2014, o PIB local cresceu 76%, segundo a consultoria PwC, a maior expansão da Austrália e o dobro da obtida por Sydney, maior metrópole do país.
É claro que, como qualquer cidade, Melbourne tem problemas. O preço médio de uma residência nas áreas centrais subiu 160% de 2000 a 2011, ultrapassando meio milhão de dólares. No período, o ganho anual das famílias subiu 57%, para 66.500 dólares. É aquela história: quanto mais demanda, mais aumenta o preço.
A especulação deve fazer com que 50.000 famílias fiquem sem casa até 2020. “Os estrangeiros chegaram, os preços subiram e a cidade se espalhou para bairros mais distantes, onde o transporte público é pior e os serviços não são tão acessíveis assim”, diz Robin Goodman, reitora da Faculdade de Ciências Sociais e Estudos Urbanos da Universidade RMIT.
Outro desafio da cidade é saber o que fazer com os funcionários das montadoras que estão fechando as portas. Nos últimos anos, boa parte do parque fabril mudou-se para a China — das dez montadoras que a região metropolitana de Melbourne já teve, resta apenas uma, que vai fechar as portas neste ano por causa dos altos custos.
Agora, Melbourne precisa se reinventar — e depressa — para evitar que no futuro não seja vítima do próprio sucesso. Desde os anos 2000, a cidade tem ganhado, em média, 100.000 habitantes por ano. Nesse ritmo, daqui a 34 anos chegará a 8 milhões de habitantes, 80% mais que hoje. Como manter a qualidade de vida para uma população que irá quase dobrar?
Para responder à pergunta, Melbourne dá, novamente, um exemplo de planejamento. No ano passado, o governo estadual criou a Autoridade de Planejamento de Victoria, uma agência reguladora para o desenho urbano de Melbourne e dos arredores, com a função de coordenar a estratégia de expansão da cidade. “Os técnicos são escolhidos sem interferência política”, diz Frank Hanson, diretor da agência.
A visão de Hanson até 2051 é que cada cidadão tenha todo serviço básico — escola, hospital e comércio — a, no máximo, 20 minutos a pé de casa. Para isso, a ideia é mudar o zoneamento próximo das universidades, facilitando a instalação de negócios inovadores ao redor deles. Outra medida, que já saiu do papel, é o investimento de 11 bilhões de dólares para modernizar e ampliar o metrô. Ter uma visão assim é um sonho para qualquer cidadão brasileiro. Em Melbourne, ele já está começando a ser construído. 

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