Dia da criança
Meu tempo de criança foi entre a segunda metade dos anos 1950 e a primeira dos anos 1960. Tive o privilégio de nascer na mágica e energética Bento Gonçalves, onde vivi até os 12 anos. Por coincidência o final da infância.
Aí então Porto Alegre, bondes, jovem-guarda, aulas no Julinho e passeatas na Rua da Praia, calça Calhambeque nas Lojas Renner, cachorro-quente, banana-split e escada rolante nas Lojas Americanas, pastel e caldo de cana na volta do Mercado, cachorro-quente Passaporte para o Inferno (do Zé do Passaporte, com a pimenta lacrimogênea).
O tempo passava mais lento, elegante. Vieram anos de chumbo. Melhor voltar para a infância, para as aulas da professora Adyles Ros de Souza, cheias de ensinamentos, histórias e dicas para uma vida bonita. Um dia, nosso único colega negro não estava e ela nos disse para evitar qualquer discriminação. Não precisávamos levantar quando ela entrava em aula e nem pedir licença para levantar para apontar o lápis na lixeira ou ir ao banheiro. Moderna, pedagógica, nos educou para a vida.
Mostrou-nos que é possível ser criativo, diferente. Criar, criatividade, aliás, tem tudo a ver com criança, com olhos que tocam o mar, o céu, as estrelas e os montes pela primeira vez e imaginam outros mundos. A professora Adyles foi uma coisa ótima acontecida em 1964, quando eu tinha 10 anos e ela, bondosa, disse que eu sabia escrever redações. Na vida de uma criança, um dia, uma frase, uma situação, podem muito e para o resto da vida. Obrigado, professora, acreditei.
Estou fazendo o melhor para o momento, para não desmentir suas inspiradoras e esperançosas palavras. Quem sabe, no futuro, eu ainda melhore nas redações. Memória é onde as coisas acontecem muitas vezes, e aí a gente pode ter infinitas infâncias, lembrar de muitas formas os tempos das bolas de gude. De vez em quando pode inventar certas partes de lembranças que não foram lá das melhores.
Aos sete anos, na sala da sacristia, na catequese, a freira nos assustou com uma imagem-pôster do inferno, o quadro A morte do pecador. Um velho numa cama, agonizante, rodeado por diabos terríveis, de pelos pretos e aparências tétricas era o que nos esperava se pecássemos. O susto foi grande. Fiquei sem dormir direito um bom tempo, com medo do diabo. E era guri quase sem pecado. Um dia de madrugada meu irmão, cheio daquela história, disse que não tinha diabo nenhum no quarto e que eu dormisse. Irmão mais velho serve para isso. Obrigado, mano.
Quem assistisse à catequese até o fim ganhava um tíquete para pagar menos no Cine Popular, ao lado da Igreja, conhecido como Cinema Dospadre. Marcelino Pão e Vinho, O Gordo e o Magro, os Três Patetas, O Tarzan e o John Wayne matando índios nos distraiam rigores da catequese e do quadro do inferno, que, aliás, está numa das paredes da Matriz de Bento. A Igreja assustava, mas dava desconto para o cinema. Era a vida, amarga e doce, profana e sagrada, cheia de aprendizados de criança, gestando o menino, o pai do homem.
a propósito...
É bom e necessário lembrar da infância, das origens e tentar se entender um pouco, mas sem exagerar dizendo "que saudades tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais", do romântico Casimiro de Abreu. Infância não é só beleza e Casimiro sabia.
Velhas infâncias não eram melhores ou piores que as eletrônicas de hoje. São diferentes. Fui com as filhas na Disney. Viram maravilhas. Mas uma das maiores alegrias foi correr, rir e brincar com as primas, sem qualquer brinquedo, no prédio do trenzinho que nos transportava para fora. Luzes, palavras, sons, imagens, videogames, smartphones, tudo bem.
Mas a leitura silenciosa de um livro e a brincadeira pura ainda são experiências incomparáveis para a imaginação, sonho, o coração e a inteligência. - Jornal do Comércio
(http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/10/colunas/livros/589906-casa-mulheres-memorias.html)
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