07 DE OUTUBRO DE 2017
PAULO GERMANO
O JUIZ TAGARELA
Não quero me repetir, me perdoem, mas terei de abrir esta coluna dizendo o que já disse outras vezes - porque, se não digo, alguém dirá que estou defendendo o indefensável, o que é meio irritante. Portanto, atenção: Jair Bolsonaro é um projeto de déspota. É um preconceituoso, truculento, autoritário, intolerante, irresponsável. Certo? Agora, vamos em frente.
Na sentença que condenou Bolsonaro a pagar R$ 50 mil de indenização por ofender quilombolas, a juíza Frana Elizabeth Mendes, da 26ª Vara Federal do Rio, resolveu passar um pito no deputado - você acessa a íntegra da decisão e, lá pelas tantas, tem a impressão de estar lendo um textão de Facebook. "Política não é piada, não é brincadeira. Deve ser tratada e conduzida de forma séria e respeitosa por qualquer exercente de poder", ralhou a magistrada.
Ela ainda nos brinda com sua visão sobre a política brasileira, cujos representantes "passam a defender grupos específicos, destinando-se a um eleitorado setorizado, como se fossem lobistas, corporativistas (...), se esquivando das noções básicas do exercício político geral". Não há qualquer argumento jurídico nisso. Nenhum amparo técnico nessa lição de moral. A doutora Frana aderiu a uma perigosa moda que se esparrama pelo nosso Judiciário: a do juiz tagarela.
O juiz tagarela esquece que não é ele quem deve dizer o que é certo - é a lei. Seu papel deveria ser interpretá-la e aplicá-la, mas ele prefere oferecer sua edificante contribuição pessoal para o julgamento, como fez José Antônio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, ao negar o pedido de proibição da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que recria a história de Cristo como transexual.
O resultado da decisão, que evitou qualquer censura à peça, foi salutar, não há dúvida. Mas Coitinho simplesmente ignorou a existência de qualquer lei, escreveu uma espécie de crônica sobre como enxerga o mundo e finalizou sua sentença assim: "No popular, diríamos, irá (ao espetáculo) quem quiser ver. E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais. Je suis Charlie".
Mas como je suis Charlie, meu Deus? E como um juiz decide qualquer coisa "sem citar um único artigo de lei"? O advogado que havia pedido a proibição da peça recorrera ao Código Penal para afirmar que o espetáculo cometia crime ao "vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". Não há uma linha no despacho do juiz Coitinho dizendo por que não houve crime.
Estou contestando decisões cujos resultados me agradam - a condenação de Bolsonaro e a liberação da peça - porque criticar decisões das quais discordo seria bem mais fácil. Quem me alertou para esse modismo forense foi o sempre perspicaz Caue Fonseca, jornalista aqui da Zero que resumiu bem a questão: "O melhor juiz é o que pode pensar radicalmente diferente de mim, mas como a legislação é a mesma para nós dois, a decisão dele será inevitavelmente isenta".
Claro. Porque, se o juiz tagarela for um libertário humanista, talvez a sentença saia bonitinha, mas, se ele for um brucutu nazista, o desastre é iminente. Há quatro meses, Christopher Alexander Roisin, da 11ª Vara Cível de São Paulo, opinou sobre a "reputação elástica" da escritora Fernanda Young para calcular quanto um homem que a ofendeu no Instagram deveria pagar-lhe de indenização.
Esse tipo de parecer jurídico - apoiado na subjetividade das opiniões - era praxe no stalinismo, em que o Judiciário protegia os interesses do povo e do Estado socialista. Quer dizer: em nome desses nobres interesses, o julgador tangenciava a legislação e, mesmo sem provas suficientes, podia condenar alguém por conspirar contra o Estado.
Aqui no Brasil, sugiro que a juizada tagarela, para aplacar essa vontade de opinar sobre tudo, faça faculdade de Jornalismo, ingresse na Zero Hora e peça para escrever na página 23 do caderno DOC. É o espaço ideal para publicar tudo que é opinião furada.
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