26 DE OUTUBRO DE 2017
CINEMA
CARICATURA DE GODARD
EM O FORMIDÁVEL, diretor Michel Hazanavicius (de O Artista) narra episódios da vida do cineasta francês no fim dos anos 1960
Difícil gostar de cinema e ficar indiferente a O Formidável. O filme que estreia hoje no circuito é uma cinebiografia de Jean-Luc Godard que dribla de maneira radical um problema bastante comum às cinebiografias: o fato de incorporar em seu próprio discurso o discurso do biografado. Diretor oscarizado com O Artista (2011), o francês Michel Hazanavicius fez o oposto disso: caricaturou o realizador de Acossado (1960) e Adeus à Linguagem (2014), ressaltando, em O Formidável, suas piores características pessoais.
O lado obscuro do gênio revolucionário da linguagem cinematográfica é evidenciado no livro Un An Après, escrito por sua ex-mulher, a atriz Anne Wiazemsky, e que serviu de base para o roteiro de O Formidável. Anne, morta no último dia 5, aos 70 anos, foi casada com Godard entre 1967 e 1979 (logo depois que ele se separou de Anna Karina). O filme flagra o início dessa relação, da paixão à época das filmagens de A Chinesa (1967), que os dois rodaram juntos, até o célebre maio de 1968 em Paris e seus devidos desdobramentos imediatos. O galã Louis Garrel, em irreconhecível caracterização e impressionante atuação, falando com a língua presa, encarna o cineasta, enquanto Stacy Martin (de Ninfomaníaca) interpreta sua musa naqueles anos turbulentos.
É conhecida dos cinéfilos a crise que acometeu Godard à época, culminando com uma guinada na sua carreira, rumo à atuação política mais radical - crise que é representativa do próprio esgotamento da Nouvelle Vague como movimento responsável por renovar o cinema francês a partir do fim dos anos 1950. Como pensar naquele militante inveterado partilhando das inquietações estéticas, por exemplo, de François Truffaut? Entre muitos comentários pontuais sobre aquele contexto de embates tão artísticos quanto ideológicos, O Formidável reserva uma frase de Godard sobre Truffaut. Na verdade, quase tudo que cerca o diretor de A Chinesa está sob o seu rigoroso julgamento - patrulha seria uma definição adequada ao que apresenta Hazanavicius. Será que foi assim mesmo?
O Formidável começa com uma avalanche de adjetivos, que Anne, então com 20 anos incompletos, despeja para descrever o homem pelo qual se apaixonou. Ao fundo, ouve-se uma sonata para piano de Mozart (depois, vai-se ouvir de Strauss a Dizzy Gillespie, passando por Georges Brassens) e a sentença de Godard: "Mozart morreu aos 35 anos, e ele estava certo: os artistas devem morrer aos 35 anos, antes de se tornarem velhos escrotos. Em alguns meses, vou fazer 37".
O "velho escroto" desenhado por Hazanavicius é aquele que decepcionou Anne demonstrando intolerância, inicialmente política mas também, como se pode observar desde que a narrativa salta do set de A Chinesa para as passeatas estudantis, com qualquer comportamento que não seja adequado ao que julga como correto. Ele não admite nem elogios aos seus próprios filmes, que realizou nos anos anteriores (entre os quais alguns dos melhores de sua carreira, como Viver a Vida, de 1962, e O Desprezo, de 1963), pois renega o que, naquele momento de exaltação, vislumbrava como meras inquietações pequeno-burguesas. O que irrita particularmente é a chatice do personagem caricato, apresentada de modo reiterativo por Hazanavicius e resumida pelo embate, aos gritos, que Godard mantém com amigos dentro de um carro no qual seis pessoas terão de "aturar-se" durante várias horas.
DISCURSO DE GODARD É REDUZIDO E ESVAZIADO
Esse humor nada sutil coexiste com brincadeiras mais espirituosas, a exemplo de uma sequência que ironiza a nudez dos atores e outra que reconstitui uma coletiva no Festival de Avignon. Hazanavicius tem lampejos de ótimo cinema (quando o casal vê o clássico A Paixão de Joanna d?Arc, ou quando a montagem intercala os fragmentos registrados por Godard nas manifestações de rua, e também em diversos diálogos ao longo de todo o filme), mas parece querer provar um ponto ao retornar, a todo instante, ao pedantismo e à teimosia mal-educada de seu protagonista, deixando claro que seu interesse não recai sobre as ideias contidas no discurso de Godard - por sinal, apresentado de maneira injustamente redutora.
A própria Anne, no roteiro que Hazanavicius escreveu a partir de suas memórias, é desprovida das nuances que, apesar de ser tão jovem, certamente possuía - vale lembrar que, pouco antes, ela havia protagonizado A Grande Testemunha (de Robert Bresson, 1966), um dos maiores filmes já feitos. Como a comprovar esse "achatamento" de ideias, os distribuidores brasileiros apresentaram um título nacional que, embora contenha ironia em si, não condiz com a dualidade da expressão original em francês - Redoutable, nome de um submarino da época citado na trama, pode significar ao mesmo tempo "formidável" (no sentido de aprazível) e "temível" (assustador, amedrontador).
Godard pode ser tudo isso. Mas Hazanavicius optou por apresentar apenas uma parte desse todo.
DANIEL FEIX
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