segunda-feira, 23 de outubro de 2017



23 DE OUTUBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Adeus, estranho

Era uma espaçosa avenida de Boston aquela pela qual eu caminhava, mas poucos carros escorriam por seu leito e as calçadas também estavam quase vazias. Só havia uma pessoa caminhando em sentido oposto, lá do outro lado. Sentia-me meio que o dono da rua. Andava sem pressa no rumo de casa, aproveitando a belíssima tarde de outono, quando ouvi a música. Vinha de algum lugar às minhas costas, surgiu alta e nítida, apesar de distante, como se estivesse em um concerto. Reconheci a canção já nos primeiros acordes, é das minhas favoritas: Goodbye Stranger, do Supertramp.

O Supertramp foi uma banda que se formou sob patrocínio de um nababo britânico. O homem colocou um anúncio em uma revista pop, tipo "precisa-se de músicos", os candidatos apareceram, ele os selecionou e, pronto, estava montada a banda.

O grande sucesso do Supertramp foi um disco que comprei aí por volta de 1980, ano em que estava entrando na Famecos. Tenho-o ainda, chama-se Breakfast in America. Quando os discos foram substituídos por CDs, comprei Breakfast in America em forma de CD. Quando os CDs foram substituídos por pen drive, gravei as músicas em pen drive. Quer dizer: gosto mesmo do disco.

A música tem a capacidade de se comunicar diretamente com o sentimento. É algo de instinto. De bicho. Você ouve uma melodia e passa a se sentir de determinada maneira. Pode-lhe vir a melancolia, pode-lhe vir a euforia, pode-lhe vir um enlevo qualquer. Não há razão para você se sentir daquele jeito, a não ser a música que está ouvindo. Como é possível?

Schopenhauer, para quem a música era a forma mais elevada de arte, contava que, certa madrugada, em Hamburgo, um violinista bêbado fez uma aposta temerária com os amigos também bêbados: ele iria pular a cerca de uma empresa que era vigiada por cães ferozes. Os amigos duvidaram, ele disse que ia, que era valente e tudo mais, e foi. Pulou a cerca, caiu do outro lado e, assim que tocou o solo, os cães vieram, rosnando e mostrando os dentes de navalha, prontos para dilacerar a carne do invasor. O violinista, horrorizado, teve presença de espírito para assestar seu instrumento ao queixo e começar a tocar. Os cachorros, ouvindo a melodia, pararam, deitaram-se a seus pés e ficaram sorvendo a música, como que hipnotizados.

Coisa de bicho, mas nós somos bichos.

Bicho que sou, algumas músicas me trazem não apenas sentimentos, como também lembranças. Aquele disco do Supertramp sempre me leva de novo ao mundo dos anos 80, lembro que nem telefone eu tinha em casa, que esperava a chegada do carteiro com a carta da namorada que morava longe, penso em amigos que nunca mais vi. Por onde andará o Dadinho, de Cachoeira, que também adorava o Supertramp?

Essa música em especial, Goodbye Stranger, ela me produz devaneios de liberdade. A letra conta uma história: ontem de manhã, bem cedo, acordei antes de o sol nascer. Eu realmente gostei muito de estar aqui, mas tenho que ir embora. Como um rei sem castelo, como um barco sem âncora, eu tenho que me mandar. Adeus, Mary. Adeus, Jane.

Cara, é assim que me sinto. Tantas coisas tentam me prender, compromissos, afetos, responsabilidades, minha própria precariedade humana... Ninguém é totalmente livre, e é possível que ninguém queira ser. 

Você vai vivendo e vai criando laços e os laços vão ficando mais apertados e você até quer que fiquem assim, mas, de repente, basta uma música para a sua alma sair voando e você compreende que aqui dentro, no peito e na cabeça, na alma, enfim, você está saudavelmente sozinho, você pode andar pela rua vazia numa tarde de outono e se sentir bem apenas porque está caminhando sem pressa e então, na calçada do outro lado, você vê alguém que caminha em sentido oposto e que talvez esteja se sentindo exatamente como você, porque está ouvindo a mesma música. 

Você não conhece aquela pessoa, por isso ela é livre para você. E você é livre para ela. Vocês estão se cruzando a distância e se olham, vocês ouvem o cantor dizer que ele é como um escravo livre e vocês também se sentem assim e talvez digam baixinho, um para o outro, enquanto se vão: adeus, estranho.

DAVID COIMBRA

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