27 de setembro de 2016 | N° 18645
CARPINEJAR
Triste morte
Você só vê as vítimas da morte. Até acha que ela é infalível. Só visualiza o trabalho feito, os obituários implacáveis, os caixões descendo no chão ou subindo nas paredes, a sua inclemência com todas as faixas etárias.
Mas não enxerga as suas falhas. Não percebe o quanto ela deixa a desejar em termos de aproveitamento.
A morte também é humana e incompetente. Às vezes, se engana de horário. Às vezes, erra a pontaria. Já dormiu em pleno expediente comercial, já fez greve por aumento de salário, já cometeu o vacilo mais bobo e se apaixonou pelas suas presas.
A morte nem sempre acerta. Amarga dúvidas vocacionais e crise de consciência. Fraqueja diante de velho casal que dorme de conchinha e mente para o destino que não encontrou ninguém lá.
A morte não é imbatível como julgamos. Permite aviões com equipamento vencido pousarem, autoriza ônibus com motorista cochilando não cair em curva, salva pedestres desatentos.
Ela sopra vento frio no rosto de suas próximas encomendas para dar chance de se protegerem e mudarem de percurso. Educada, alerta a intuição de cada um antes do fim.
Há mais quase acidentes do que acidentes em seu currículo. Quantas tragédias foram evitadas pelos seus assobios?
A morte é a mais triste das criaturas, nunca é comemorada. Não se dignifica com o trabalho. Não se converte ao bem poupando ninguém. É gerada em nosso nascimento, porém permanece a vida inteira intratável como vilã.
Seus fracassos generosos não são noticiados pelos jornais e terminam desconhecidos. Quem ganha com a omissão é o anjo da guarda, que recebe créditos quando alguém escapa por um fio de uma situação de perigo.
A morte tem seus segredos de amor, sua coragem parece ser a de negar a si mesma. Cansa dos choros, gritos e três batidinhas na madeira, não suporta os arranjos acobreados dos velórios, a comidinha fria e a decoração fúnebre de suas festas.
Certo que também experimenta os seus momentos inspirados e cruéis de guerras, terremotos e chacinas, porém odeia sangue, prefere levar as pessoas dentro do sono, onde pode se misturar à paz das lembranças e conhecer melhor os desejos do falecido. E abomina igualmente o amadorismo de balas perdidas e a crueldade desnecessária do narcotráfico.
A morte nem sempre mata – é a gente que não tem capacidade de provar as suas distrações invisíveis.
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