quarta-feira, 28 de setembro de 2016



28 de setembro de 2016 | N° 18646 
PEDRO GONZAGA

NOITE

A crônica é um gênero inegavelmente diurno. Chega com o jornal. Se a perdemos no café da manhã, bebemo-la no intervalo do trabalho, no transporte público, no espaço compulsório de uma espera, quando muito, furtamo-la sobre os ombros de alguém à hora do almoço. Por isso, seus assuntos são as coisas do dia: a política, o esporte, a cultura e os costumes. 

Se a crônica é um pouco mais íntima, se se nutre de reminiscências e de anedotas pessoais, ainda assim mantêm a virtude das conversas cotidianas, raramente ganhando o tom grave que reservamos às coisas da noite. Poderia pensar em inúmeros poemas que se passam ao anoitecer, de madrugada, que foram concebidos para nos envolver como o sereno. 

E nem precisamos ir aos românticos que veneravam a lua encharcados de melancolia, versos noturnos estão por toda parte (não sei quantas vezes é noite em Drummond, quantos vinhos os poetas chineses beberam ao relento). Peço, em contrapartida, que vocês tentem se lembrar de quantas crônicas frequentam esses lugares. Seguro que as há, mas é de contar nos dedos.

Penso nisso enquanto vejo o dia cair preguiçoso, sucedido pelo frio saudável das primeiras noites da primavera. Uma crônica sobre a noite. Entre os galhos que se debruçam sobre a sacada do Hotel Charrua, em Santa Cruz do Sul, brilha o planeta vizinho e inabitável, a minha primeira grande decepção cósmica, ainda pelas mãos do Carl Sagan.

As luzes da rua se acendem de súbito, um pouco fora do tempo. Por vezes, seria bom ser como o Mickey no Fantasia, controlando todos os efeitos ao redor, suspendendo por alguns minutos a iluminação pública, os carros de som dos candidatos desesperados, mesmo que fosse preciso pagar o preço que o bom camundongo paga no desenho, o caos completo no porvir.

Valeria a pena. Porque esta noite que vocês agora leem, só faltou que chegasse lenta, três minutos em que tivesse permanecido estática, três minutos em que o amor a tivesse por fundo fixo. Depois, estão as coisas do depois. Uma noite perfeita de três minutos. Mesmo que apenas na página da crônica.

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