segunda-feira, 12 de setembro de 2016


12 de setembro de 2016 | N° 18632 
DAVID COIMBRA

Aquela foto sua que você odeia

Noite azulada de sexta-feira. Fazia um calor dos trópicos e soprava uma daquelas brisas que carregam pólen e lembranças. Decidimos ir a um restaurante aqui perto, que tem mesinhas na rua. Estávamos diante das nossas Sam Adams douradas e a Marcinha pediu para o garçom registrar o momento em foto. Ele pegou do meu celular e, em um segundo, lá estávamos nós, sorrindo para o mundo.

A Marcinha tomou o aparelho, olhou a foto e gritou:

– Meu Deus! Me assustei: – O que foi?

Ela, segurando o celular com as duas mãos, fitando-o de olhos arregalados, repetiu, em tom ainda mais aflito:

– Meu Deus!!! – Por todos os descendentes de Daguerre: o que é que foi???

– Estou gorda! – Hein?

– Estou gorda! Que foto horrível! – Que gorda, o quê... Deixa eu ver a foto.

– Nunca! Estou gorda! Olha esses braços! – Me deixa ver.

– Nunca! Que horror! Segunda vou começar uma dieta! Estou gorda! GORDA! Olha esses braços!

Apesar de continuar dizendo “olha esses braços”, ela não me deixava olhar os braços. Não devolvia o celular e queria apagar a foto de todas as formas. Eu tentava convencê-la:

– Pensa: estou te vendo aqui mesmo, tu está bem na minha frente. Que diferença faz eu ver a foto? Além disso, tu não está gorda. Juro!

Não adiantava, ela não largava o celular. Só consegui ver a maldita foto depois de prometer que a olharia uma só vez e a apagaria. Olhei. Ela não estava gorda. Estava linda. Braços magros como os de uma modelo comedora de alface. Disse isso para tentar preservar a foto, mas ela não se comoveu:

– Apaga! Apaga!

Fiquei num impasse: ou a mulher ou a foto.

Isso foi sexta. Dois dias depois, recebi a taluda edição dominical do New York Times. Na capa, a propósito dos 15 anos do atentado de 11 de setembro, havia uma reportagem, exatamente, sobre fotos.

É que no Memorial do World Trade Center há uma galeria com as fotos das quase 3 mil vítimas do ataque terrorista. Faltam apenas 10 retratos. Três desses, as famílias não quiseram enviar, por uma questão de privacidade. Outros sete estão identificados, mas os curadores do museu simplesmente não encontram fotos das vítimas. Faz 15 anos que o Memorial procura parentes, amigos ou conhecidos que tenham imagens dessas pessoas, o Times já tentou ajudar, e nada.

É verdade que há 15 anos ainda não existia a ubiquidade fotográfica do celular, mas as pessoas já se retratavam com abundância. Esses sete personagens, porém, vão ficar sem rosto pela eternidade.

Achei isso grave.

Mas há outro lado, que talvez seja positivo: e se as fotos achadas dessas sete pessoas fossem as que elas mais odiassem, como a Marcinha odiou aquela do restaurante?

O que você preferiria: ter, em exposição pública, para a posteridade, uma foto sua que lhe envergonha ou não ter foto alguma?

Eis a questão.

E agora farei uma confissão: ludibriei a Marcinha. Gravei a foto em outro arquivo, antes de apagá-la. É um trunfo que tenho. Usarei em futuras negociações. Nunca mais filmes de amor. Nunca mais aniversários de criança. Nunca mais abacate na salada.

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