16 de setembro de 2016 | N° 18636
DAVID COIMBRA
Vinte amigos no Rio
Lá vamos nós, Brasil acima e afora e adentro. Havia interrompido o relato da viagem que estou planejando, 20 amigos em um ônibus, varando o país em um roteiro gastronômico-sentimental, mas os leitores se animaram, lotaram minha caixa de e-mails com sugestões e, assim, animaram-me também.
Animado sigo. Alguns leitores querem ir junto, talvez tenhamos de alugar outro ônibus, talvez tenhamos de nos deter um pouco mais na Região Sul, estou começando a ficar aflito com a quantidade de opções. Em todo caso, mantenho meu rascunho. Falarei do Rio de Janeiro.
É que descobri uma feijoadinha mais do que cumpridora no Rio de Janeiro. Sobre isso, preciso contar um caso. Certo sábado de sol, estávamos em alegre bando gaúcho no Rio. Dourávamos nossos bíceps e tríceps nas areias da praia, quando me bateu uma fome ancestral. Então, sugeri:
– Que tal uma feijoadinha no Tio Sam?
Já conhecia a feijoadinha do Tio Sam, sabia de seus predicados. Donde, a sugestão. Mas entre nós estava o Admar Barreto, grande amigo, um dos que irrecorrivelmente estará no ônibus. Acontece que o Admar é homem de hábitos arraigados. Também sou, confesso, e pela mesma razão que ele, que pode ser resumida em uma pergunta filosófica: se algo deu certo, por que se aventurar em novidades?
O Admar, assim, torceu o nariz. Disse que preferia continuar estendido na praia, fritando lentamente, feito uma salsicha. Mas, como velho repórter que sou, sei que certas coisas só são alcançadas sendo chato. E fui. Fiquei repetindo, sem parar:
– Feijoadinha! Feijoadinha! Feijoadinha! Feijoadinha!
Até que ele não aguentou mais e suspirou:
– OK, você venceu: feijoadinha. Fomos para o Tio Sam, que fica no Leblon, de onde, aliás, o Admar se recusa a sair quando vai ao Rio.
O Tio Sam era o bar do João Ubaldo Ribeiro.
João Ubaldo Ribeiro se celebrizou pelo livro Viva o povo brasileiro, mas tenho cá para mim que Sargento Getúlio é melhor.
Não lembro de um sábado em que tenha ido ao Tio Sam e não tenha visto o João Ubaldo Ribeiro lá. Ele tinha o seu próprio copo no bar, um que só ele usava. Um dia, quebrou o copo. O João Ubaldo comprou um igual e levou para o Tio Sam. Era um copo alto, disso me recordo. O João Ubaldo o enchia com uísque. Depois, os médicos mandaram que ele parasse de beber, então o enchia de guaraná diet, que tem a mesma cor.
“O João Ubaldo não bebe mais”, era o que todo mundo dizia e o próprio afiançava ser verdade. Pouco antes de ele morrer, porém, o avistei no Tio Sam com o mesmo copo na mão, só que preenchido com chope, em vez de uísque ou guaraná. Concluí que a idade conduziu João Ubaldo à sabedoria de Aristóteles, que ensinava: “A virtude está no meio-termo”.
Naquele sábado, enquanto eu saboreava a feijoadinha do Tio Sam, ouvi João Ubaldo contando piadas de pé, na calçada. Depois, ele entregou o copo ao garçom e se foi, arrastando os chinelos, de bermuda, bem devagarinho, até seu apartamento, que ficava ali perto. Nunca mais o vi.
Não era feijoadinha que o João Ubaldo comia no Tio Sam. Era um filé malpassado que até leva seu nome. A feijoadinha, comemos nós, o Admar inclusive, e aprovou. Agora a feijoadinha do Tio Sam foi incluída entre os hábitos arraigados do Admar. Ponto para o Tio Sam.
Nossa viagem terá de passar pelo Rio em um sábado, portanto, para irmos ao Tio Sam, provar da feijoadinha. Então, levantaremos os nossos copos e brindaremos ao João Ubaldo. E à amizade, claro. Bons amigos têm de brindar à amizade.
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