24 de setembro de 2016 | N° 18643
ANTONIO PRATA
DIA DA FANTASIA
Na escola da minha filha, toda quarta é dia da fantasia. Vou levá-la até a sala e quase sou atropelado por um Homem-Aranha em fuga, perseguido por uma Frozen e uma bailarina. No tanque de areia, um urso panda briga com uma Peppa Pig por causa de um baldinho. Encostado numa pilastra, com ar superior, um Superman afirma, categórico: “Odalisca não existe, tá?”. A odalisca chora.
Deixo minha filha (Pequena Sereia) na classe e, atravessando aquele carnaval, me volta a eterna constatação de quem convive com crianças: como adulto é chato, como com o passar do tempo vamos abaixando o volume, equalizando graves e agudos, deixando que, por timidez, covardia ou, pior, por preguiça, o olhar fosforescente dos primeiros anos se transforme nesse mingau bege da maturidade.
Na mesma noite, porém, vou ao Shopping Frei Caneca assistir a um filme, entro na fila e, ainda contaminado pela visão daquele pátio, percebo que eu estava redondamente enganado: os adultos também estão fantasiados, muito mais fantasiados – e não só às quartas-feiras.
Primeiro, vejo o magrelo de boina, óculos de aro fininho e suspensórios. Veio vestido de cinéfilo, é claro. Não de qualquer cinéfilo, mas de amante do cinema francês (boina) dos anos 1960 (aro fininho) puxando um pouco para o neorrealismo italiano (suspensórios).
Atrás do cinéfilo, um lutador de jiu-jítsu com orelha de couve-flor, bermuda, chinelo Rider, camiseta com um urso e os dizeres “Team Guigo” está vestido não para entrar no cinema, mas no “octagon” do UFC. Imagino que, passada a catraca, vá pedir uma pipoca com açaí e um Sprite com proteína de soja.
A namorada do lutador usa uma saia tão curta, mas tão curta, que consegue driblar as leis da física: a barra parece estar acima da cintura. O top mal contém os enormes peitos de silicone, e o perfume, se espraiando pela fila, não deixa dúvida sobre qual fantasia ela veste (ou despe?): fantasia sexual.
Mais à frente, um garoto de camiseta Lacoste, bermuda jeans, cinto de couro trançado e mocassins sem meia está fantasiado de “trabalho-no- mercado-financeiro-e-vou-ganhar-meu-primeiro-milhão- antes-que-vocês-terminem- suas-pipocas”. A mulher, de cabelo loiro até a bunda, dentes brancos e perfeitos, toda trabalhada na power yoga, parece dizer “mozinho-serei- sua-esposa-fiel-e-cuidarei-da- casa-e-dos-filhos-enquanto- você-garantir-as-viagens-na- primeira-classe”.
O casal é olhado com desprezo pelas moças de cabelo curto, regata e calça militar: “rejeito-a-feminilidade-padrão-‘ninguém-nasce-mulher- torna-se-mulher’-e-vocês- erraram-de-shopping-aqui-é- Frei-Caneca-porra!”.
Observando a tudo, um sujeito de calça jeans, Hering preta, velhos Nikes de corrida e barba por fazer talvez pretenda emplacar um: “sou- desencanado-estou-acima- dos-ditames-da-moda-roupa- pra-mim-é-conforto”, mas os óculos de tartaruga o denunciam: “sou-artista-barra-intelectual-minha-falta-de-apuro- é-muito-bem-apurada-como- um-traço-de-distinção-um- troféu-tipo-não-vou-ficar-rico- como-o-da-Lacoste-nem-dar- porrada-como-o-da-couve- flor-mas-pelo-menos-posso- andar-mulambento-por-aí”.
Perto de tamanho apuro cenográfico, a saia de sereia da minha filha e a máscara de Peppa da amiga parecem coisa de criança.
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