sexta-feira, 9 de setembro de 2016



09 de setembro de 2016 | N° 18630 
CLÁUDIA LAITANO


Asperezas

Porto Alegre é uma cidade áspera. Não me refiro aqui à onda de violência dos últimos meses ou à sensação de acabrunhamento crescente que ela vem produzindo, mas àquela aspereza cotidiana, velha conhecida, que costumamos associar com a nossa maneira muito peculiar de ser e estar no mundo: sempre a postos para uma guerra que nunca começa nem nunca termina. 

Falo daquele jeitinho gaúcho tão pitoresco que se manifesta com mais intensidade no trânsito e em outras circunstâncias em que o outro é apenas uma abstração de carne e osso a atravancar nosso caminho (eles passarão, eu passarinho antes). Jamais ceder a vez, economizar sorrisos, evitar cumprimentos e desculpas sempre que possível, correr para chegar na frente como se a nossa vida dependesse disso, confundir destempero verbal com “espontaneidade”. Tudo isso se vê todos os dias na capital dos gaúchos, o lugar onde a gentileza muitas vezes é vista com desconfiança ou mal disfarçado desprezo.

Nasci e vivi aqui toda a minha vida. Nenhum traço que me irrita ou envergonha na maneira como nos comportamos socialmente me é estranho. Convivo e brigo com minhas asperezas todos os dias, polindo as arestas que trago de fábrica sempre que me dou conta delas. Sei que é um esforço que pode ir por água abaixo ao menor descuido. Entre nós, o preço da civilização é a eterna vigilância.

Sempre encarei essa aspereza como um traço que podemos (devemos) atacar no varejo, mas que é imbatível no atacado. Como o hábito de exagerar no consumo de carne vermelha: por mais que o veganismo se popularize, o churrasco será sempre nosso prato típico. Até que a economia compartilhada introduziu entre nós o revolucionário conceito da reputação: você é aquilo que os outros dizem a seu respeito. 

Isso tem feito oscilar levemente o ponteiro do nosso grossômetro – se não em todos os lugares, pelo menos nos serviços que utilizam a avaliação dos usuários como parâmetro, como o Uber ou o Airbnb. Os motoristas gentis que se preocupam com a temperatura do carro e o volume do rádio e oferecem mimos aos passageiros não são gaúchos importados da Noruega. São apenas homens e mulheres comuns que sabem que estão sendo avaliados, entre outros quesitos, pelas boas maneiras.

Talvez seja possível, sim, uma Porto Alegre mais amena no trato cotidiano. Basta imaginar, por um segundo, que a cidade está sendo avaliada por um algoritmo inteligente desenvolvido no Vale do Silício. Ou agir com a própria inteligência para tornar o lugar em que vivemos um pouco menos áspero no dia a dia.

O caso do promotor de Júlio de Castilhos que disse o indizível para uma criança vítima de estupro, sob o olhar omisso de uma juíza, felizmente veio à tona e terá consequências – espera-se. Ainda assim, assusta imaginar quantos casos semelhantes acontecem todos os dias sem que ninguém venha a público denunciar. Neste instante, promotores e juízes, médicos e jornalistas, professores e empresários podem estar trabalhando com a consciência zerada dos “cidadãos de bem”, convictos de que estão acima da violência que condenam. Dizendo o indizível, fazendo o indefensável.

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