27 de outubro de 2015 | N° 18337
CARPINEJAR
A bela e a fera
A mulher linda é a alma gêmea do homem feio. Os dois são vítimas da aparência, com grandes dificuldades para demonstrar o que são por dentro. Sou o feio de minha casa. Mas não enfrentei um bullying como o que aguentou a minha irmã Carla, uma boneca de tão formosa.
Eu fui debochado, chamado de ET, de monstro, de apelidos inimagináveis. Cansei de me envergonhar e de suportar os colegas rindo do meu jeito desengonçado. Porém mantenho o discernimento de que a Carla sofria mais: as pessoas por perto desconfiavam de sua inteligência. Não podia ser bonita e inteligente ao mesmo tempo.
A gozação era de outra ordem, caracterizada pelas indiretas. No meu caso, o bullying era a gargalhada escancarada; no caso dela, era a conversa sussurrada.
No meu caso, o bullying era a ofensa gritada; no caso dela, era a suspeita silenciosa. No meu caso, o bullying era a troça; no caso dela, era a fofoca. No meu caso, o bullying era feito em minha presença; no caso dela, era construído em sua ausência.
Qualquer avanço precoce que ela alcançava na vida, pelos seus méritos e estudo, terminava creditado para a sua beleza. Os colegas insinuavam que encontrava facilidades por ser exuberante.
Não podiam admitir a sua genialidade, e suas proezas como a láurea na faculdade de Direito da UFRGS ou o primeiro lugar no concurso do Ministério Público. Ela cresceu obrigada a se defender do senso comum, que não admitia que ela pudesse ser também competente, que conservava a mania de achar que toda a miss é burra, de que todo mulherão precisa seduzir para conseguir os seus objetivos.
Enquanto muitos deduziam que ela lesse O Pequeno Príncipe, ela conhecia O Príncipe, de Maquiavel, de cor e desbravava os clássicos da política e da literatura.
A beleza nunca a favorecia, apenas atrapalhava. Trabalhou o dobro para ser aceita, e o triplo para ser reconhecida. A mulher linda é tratada somente pelo seu físico, esvaziada de personalidade. São um preconceito e um machismo invisíveis, traficados pelo elogio do corpo.
A agressão acontece de modo psicológico e sutil, e o isolamento torna-se quase certo. Tem que se desvencilhar de cantadas ininterruptamente. Há uma dificuldade para encontrar amigos e chefes desinteressados. Sair na rua é aturar os assobios da construção civil e os olhares pornográficos. Existirá a inveja das amigas que procurarão desmerecer o seu sucesso profissional. Professores esnobarão a sua imagem bem-vestida.
A mulher bonita corre sérios riscos de virar um alvo meramente sexual e jamais ser vista por inteiro. Só ela entende o que o homem feio sente.
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