RUTH DE AQUINO
23/10/2015 - 20h32 - Atualizado 23/10/2015 20h32
Somos todas Valentina
É impressionante como, depois de tanta luta, a menina-moça-mulher ainda é intimidada
Valente Valentina, o assédio sexual e cretino a sua beleza, nas redes sociais, não pode fazer tremer suas mãos quando você criar novos pratos no MasterChef Júnior. Aos 12 anos, você, sem querer, apenas por ser linda e charmosa, despertou tarados que estão por aí, escondidos na pele de filhos, maridos e pais normais. Pedófilos e potenciais estupradores se expuseram no Twitter, protegidos ou não por apelidos. Assustaram seu pai, Alexandre. Ele estava preparado para o encantamento que você espalha, não para sujeira. “Teve gente que pediu que ela mandasse foto nua”, disse. Ele apagou tuítes ofensivos. Ele tenta proteger você, Valentina, da malícia do mundo.
Menina, uma hora você saberá que, por um tempo, uniu o gênero feminino em torno de seu nome. Valentina, você não é vítima. Não somos vítimas por ser mulheres. Você aprenderá que o feminismo ainda é necessário no século XXI. Para defender nossa autodeterminação e autoestima, nossos direitos e escolhas, numa sociedade ainda patriarcal. Não adianta omitir seu nome, nem cortar seus cabelos ou cobrir seu corpo de cima a baixo com roupas pouco atraentes. Você perceberá que a menina-moça-mulher continua a ser discriminada em vários momentos da vida e tem de reagir.
Ainda vai encarar muitas brigas, Valentina. Já devem mexer com você na rua quando sai sozinha. Na sua idade e muito depois, meus sentimentos variavam entre o medo e o desafio. Mudava de calçada quando via grupos de rapazes, para evitar o assédio, o desconforto ou a humilhação. Às vezes, xingava alto quem me dizia coisas, quem insinuava convites ou mexia no meu cabelo e pegava meu braço, para denunciá-lo, para expor meu nojo e sua doença.
É impressionante como, depois de tanta luta, desde o direito a votar, ou a usar calças compridas, ou a desamarrar o espartilho, ou a controlar a fertilidade, ou a trabalhar... é impressionante como a menina-moça-mulher ainda é intimidada ou ameaçada. Nem falo de países que obrigam meninas a casar com estranhos ou matam a chibatadas mulheres que traem. Acho incrível que os direitos femininos continuem em questão.
Direito de ser bonita, de ser sensual, de usar saia curta, direito de ser feia, de ser velha, direito de não casar, direito de se dedicar aos filhos e à casa, direito de não ser mãe, de amamentar ou não, de insistir em parto normal ou escolher cesárea, direito de abortar, direito de transar com muitos, direito ao prazer, direito de pintar os cabelos ou deixá-los brancos, direito de ser ambiciosa ou não, direito de ganhar bem e ser promovida, direito de não ser assediada por chefes.
É muita patrulha contra as escolhas femininas. A patrulha não é só masculina. Mulheres também patrulham mulheres. Mulheres patrulham a si próprias. Uma autocrítica descabida e injusta. Filhas patrulham mães e vice-versa.
Mas, semana passada, o ataque veio de homens. Não só no Twitter. Não vou reproduzir os comentários excitados com a visão de Valentina. Por que as mulheres reagiram em massa? É só ler os depoimentos de #primeiroassedio, uma campanha criada pelo coletivo Thing Olga, e ler lembranças femininas dolorosas aos 4, 9, 13 anos, em casa e na rua. Lembranças que falam de garotos e homens, da família ou estranhos, metendo a mão, passando a mão, falando sacanagens, deflorando tudo, a inocência, o corpo, a mente. Muitos homens reagiram também nas redes sociais, xingando de “babacas” os que chamavam Valentina de “uma mulher de 12 anos”.
Não foi só esse episódio que me fez lembrar que continuo feminista. O outro ataque veio de engravatados, na Câmara. Um projeto retrógrado, elaborado pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha, aprovado pela CCJ, Comissão de Constituição e Justiça, com apoio sobretudo da bancada evangélica. E suspeito que seja só o começo. O texto dificulta o aborto legal por estupro, ao fazer novas exigências à mulher estuprada – ela não poderá ser atendida em hospitais sem que antes faça exame de corpo de delito no IML e registre a denúncia na delegacia.
O texto proíbe “medicamentos abortivos”. Deixa assim em aberto a possível proibição, na rede pública, da pílula do dia seguinte para vítimas de estupro, caso a pílula seja considerada abortiva. Isso significa que o projeto de Cunha poderá obrigar a menina-moça-mulher violentada a engravidar, para, depois, abortar. Nada mais cruel.
O texto ainda transforma em crime a “indução” ao aborto ou a “informação” sobre o aborto. Seja você amigo ou médico, poderá ser preso se aconselhar ou informar. Típico de sociedades obscurantistas. Em vez de evoluir, o Brasil está rasgando direitos reprodutivos da mulher conquistados no século passado. Não podemos esquecer: #somostodasvalentes.
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