segunda-feira, 19 de outubro de 2015



19 de outubro de 2015 | N° 18329 
L. F. VERISSIMO

Missões


Você provavelmente nunca ouviu falar do guitarrista Freddie Greene. E no entanto ele tocava numa das melhores e mais conhecidas bandas de jazz da História, a do pianista Count Basie. Durante quase 50 anos, Greene sentou-se atrás do piano de Basie, meio escondido, e completou o quarteto de ritmistas da orquestra: baixo, bateria, o próprio Basie com suas intervenções minimalistas, e guitarra. Vários músicos fizeram carreira depois de se destacarem como solistas da orquestra de Basie. Greene, não. 

Não se tem notícia de um único solo dele, nem em apresentações ao vivo, nem em gravações. O que não quer dizer que sua presença não fosse, literalmente, marcante. Ele tocava guitarra rítmica, apenas marcando o ritmo e fornecendo a harmonia, e nunca pretendeu fazer outra coisa. Ficou como um exemplo de discrição e altruísmo. Era um homem com uma única missão na vida, que desempenhava com rigor. Houve até quem dissesse que era a guitarra despretensiosa do Greene, ancorando a seção rítmica, que distinguia a banda do Basie.

Mas se Greene é um exemplo de modéstia e correção profissional, também é o protótipo de outra espécie, a de todos os que, através dos tempos, justificaram seus atos dizendo que estavam apenas cumprindo ordens. O pulo de Freddie Greene a Robert Oppenheimer é grande, eu sei, mas Oppenheimer também dedicou boa parte da sua vida a uma única missão, que desempenhou com sucesso, no seu caso, e no dos seus colegas, a criação da bomba atômica.

Oppenheimer é um personagem que sempre me fascinou. De certa maneira, personificou algumas das questões mais profundas do século 20, como a responsabilidade moral da ciência, a crise de consciência que nasceu junto com a bomba e a primeira notícia dos seus efeitos, no fim um questionamento da natureza e da razão humanas. Ele mesmo contou que sua primeira reação ao saber que as bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki tinham “funcionado” foi de exultação. Depois vieram o remorso pelas mortes, a sua famosa citação do Bhagavad-Gita (“Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos”) e seu desligamento do programa nuclear americano, supostamente por excesso de autocrítica.

Em várias cidades da Europa, existem museus da tortura, exposições de instrumentos medievais usados para martirizar infelizes. Espanta saber que havia gente dedicada a inventar métodos de tortura, alguns instrumentos até engenhosos, desenhados para causar o máximo de dor sem matar. Mas não deveria nos espantar. Os inventores de torturas estavam apenas cumprindo sua missão, como Freddie Greene. E obedecendo ordens.

Tchau! Vou tirar férias. Sem foguetes, por favor. Volto no dia 19 de novembro.

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