Entrelacos

20 de outubro de 2015 | N° 18330
CAPA

A voz do fim do mundo

CANTORA ELZA SOARES mostra vitalidade ao lançar o primeiro disco só com canções inéditas aos 78 anos

O encontro do suingue carioca de Elza Soares com a vanguarda paulistana deu pororoca: o tsunami sonoro chama-se A Mulher do Fim do Mundo, primeiro disco inteiramente com músicas inéditas em mais de 60 anos de carreira da cantora. Concebido e produzido por Guilherme Kastrup, o trabalho reuniu alguns dos mais inventivos músicos em atividade em São Paulo: Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (guitarra), Felipe Roseno (percussão) e a banda Bixiga 70, além dos diretores artísticos Celso Sim e Romulo Fróes. A esse núcleo criativo, somaram-se os incensados compositores da pauliceia José Miguel Wisnik, Cacá Machado, Douglas Germano e Alice Coutinho.

– Eu tenho uma ligação muito grande com São Paulo, comecei minha carreira lá. Foi por meio do Wisnik que conheci o Cacá Machado e participei do show do disco dele, em 2011 – conta Elza em entrevista por telefone a Zero Hora, lembrando que A Mulher do Fim do Mundo nasceu a partir desse projeto, integrado por boa parte da turma paulistana citada.

Kastrup, que também produziu EslavoSamba, de Machado, montou o núcleo criativo que deu origem ao 34º álbum da intérprete de 78 anos. Contemplado pelo edital Natura Musical, A Mulher... traz 11 faixas transitando por gêneros como samba, rock, rap e eletrônica, em arranjos com timbres que incorporam ruídos, distorções e dissonâncias. “Elza Soares é uma artista viva, corajosa e, acima de tudo, não tem medo de nada! Nada é moderno demais pra ela”, escreveu Kastrup no encarte do CD.

– Eu topei sem ter certeza da grandiosidade desse trabalho. Foram 50 canções compostas especialmente para mim. É um disco muito abençoado. Estou feliz, estou nas nuvens – diz a cantora.

A Mulher... começa e termina com a característica voz rouca de Elza a cappella: Coração do Mar, poema de Oswald de Andrade musicado por Wisnik, e Comigo, de Romulo Fróes e Alberto Tassinari, emprestam solenidade à interpretação da diva. Maria da Vila Matilde fala de um assunto que Elza conhece bem: a violência doméstica. No samba torto de Douglas Germano, a personagem enfrenta o companheiro abusador em versos como “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Sem papas na língua, a cantora não foge do palavrão, como na direta Pra Fuder, de Kiko Dinucci: “Olho pro meu corpo / Sinto a lava escorrer / Vejo o próprio fogo / Não há força pra deter”.

– Os grandes cantores têm medo de falar palavrão. Mas isso é tão natural, tão normal. É uma necessidade de cantar, falar. É uma maneira de você despejar o seu desejo – explica Elza.

Mulher, negra e pobre, vinda do “planeta fome” – conforme respondeu no começo da trajetória para Ary Barroso –, casada à força aos 12 anos e mãe já aos 13, a sobrevivente Elza rasga a garganta na poderosa música-manifesto A Mulher do Fim do Mundo: “Eu vou / Até o fim / Cantar”.

– Gravei o disco rápido, em dois dias. Esse disco veio me fazer um acalanto, porque eu estava caída por causa do meu filho. Foi uma maneira de gritar, botar para fora os sentimentos – revela Elza, emocionando-se ao falar da morte no fim de julho do filho Gilson Soares, de 59 anos.

roger.lerina@zerohora.com.br