26 de outubro de 2015 | N° 18336
DAVID COIMBRA
A questão do Enem
Acompanhei a febril discussão travada “nas redes”, no fim de semana, sobre a frase de Simone de Beauvoir que caiu na prova do Enem. É frase conhecida, o mesmo debate já se deu muito tempo atrás, e foi sempre um debate sonolento. Mas não é a tese de Beauvoir que interessa. Nem vou reproduzi-la. O que interessa é que a maioria dos alunos que a leram não conseguiram interpretá-la, seja para concordar, seja pra discordar.
Não me incomodaria de ver as escolas públicas brasileiras educando pequenos Josés Dirceus ou pequenos Ronaldos Caiados, desde que as crianças saíssem de lá educadas. A ideologização é péssima, claro que é. Todas as ideologias são emburrecedoras, sem exceção. Mas, levando-se em conta a situação da escola pública brasileira, esse é um problema subalterno.
Cursei o segundo grau no Piratini, excelente colégio público. Havia ainda o Dom João Becker, nos altos do IAPI, o Parobé, célebre por seu ensino técnico, o Instituto de Educação, o Julinho, o Colégio Uruguai, o Irmão Pedro, o Infante Dom Henrique, e tantos outros, todos ótimos, de nível tão bom quanto qualquer escola privada.
O que aconteceu, de lá para cá? Por que a situação da escola pública, no Brasil em geral e no Rio Grande do Sul em particular, piora de ano para ano?
Não é só culpa dos governantes. Temos aí um problema cultural.
Quando Lutero liderou a reforma religiosa, há quase 500 anos, houve uma secularização do ensino na Europa. Um dos atos mais importantes de Lutero foi a tradução da Bíblia para o alemão. Não por diletantismo. Com esse trabalho, ele se tornou o fundador da língua alemã moderna, tanto quanto Dante o fora da italiana, 200 anos antes. Lutero dedicou-se a essa dura tarefa para que a Bíblia fosse acessível a todas as pessoas, o que as libertaria das amarras do papado, e permitiria que elas aceitassem as novas religiões. Mas, para que as pessoas pudessem ler em alemão, elas teriam de saber... ler! Logo, a educação era importante.
É por isso que, na fundação de qualquer cidade de raiz protestante, os primeiros prédios erguidos eram o da igreja e o da escola pública, muitas vezes lado a lado. A primeira escola pública da América foi levantada aqui, em Boston. É a Boston Latin School, que existe desde 1635, onde estudaram figuras como Benjamin Franklin.
Nos países católicos, a educação era restrita à nobreza e ao clero, precisamente porque a nobreza e o clero eram quase que a mesma coisa, havia interdependência entre eles, e a exclusividade do conhecimento lhes dava poder.
É claro que o mundo evoluiu e se transformou, mas você pode até mudar velhos hábitos, sem mudar velhos sentimentos. Há em nós, nos países católicos, um sentimento recôndito de que a educação não é um fim em si mesmo. A nossa percepção é de que a educação tem de servir a outro objetivo, e aí haverá de ser qualquer um: pode ser o mais comum, o de ganhar dinheiro, até o mais bizarro, o da “formação de quadros”, passando pelo supostamente libertário, que é o de “conscientização”, que na verdade não liberta: dogmatiza. O “conscientizado” pensa pela cartilha.
No Rio Grande do Sul havia, tempos atrás, uma educação de matriz protestante. Não por acaso, a melhor do país. Mas o Rio Grande do Sul foi se “abrasileirando”, todo o Brasil foi “se abrasileirando”. Hoje, mais do que nunca, o Brasil é um país homogêneo. Somos todos iguais, ou mais ou menos iguais. O que não significa que sejamos melhores.
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