ANTONIO PRATA
O nariz
Era uma dessas mulheres que você não sabe dizer se é uma senhora que, com tantos tratamentos e intervenções estéticas, ficou com cara de menina ou uma menina que, com tantos tratamentos e intervenções estéticas, ficou com cara de senhora. Botox, chapinha, clareamento, maquiagem, lipo, silicone, enchimento labial e o inconfundível encenouramento artificial acabaram por criar esta ubíqua incógnita etária: vinte e nove anos? Sessenta e oito? Só Deus – e Pitangui – sabem.
Não pretendo, veja bem, pregar o moralismo orgânico, afirmar que devemos envelhecer contando apenas com a resignação dos estoicos e os antioxidantes da alfafa. Que bom que a ciência, incapaz de frear a deselegância do tempo, do lado de dentro, pode ao menos retardá-la um pouquinho, do lado de fora, transformando cada um de nossos selfies num Retrato de Dorian Gray – ao contrário. O que me impressionou na mulher – e é sobre isso que gostaria de falar, aqui – foi o nariz. Era tão pequeno, com narinas tão estreitas, que cheguei a me perguntar se haveria espaço suficiente, naquela ervilha, para o ato – pouco glamouroso, é verdade, mas ainda fundamental, até onde eu sei – de respirar.
Diante daquele nariz customizado – evidente que não era de fábrica –, lembrei do nariz do Michael Jackson, dos narizes de duas ou três atrizes que também vêm diminuindo, gradualmente, ao longo dos anos e então percebi, assustado, que a micronapa não era um caso isolado, mas um vislumbre do futuro: depois de extinto o último pelo púbico, as lâminas higienistas do zeitgeist buscarão a eliminação nasal.
Faz sentido uma época que tem nojo de pentelho e inventou cirurgia plástica para redução de lábios vaginais olhar com certa desconfiança para este barraco, instalado na área mais nobre do corpo humano, cobrindo duas fossas nasais. “Ué” – se perguntará minha bisneta – “se canalizamos todos os rios da nossa cidade, por que não concretar estes bueiros no meu rosto?”.
Não quero parecer pedante, citando Nietzsche numa crônica de jornal, mas precisamos de toda ajuda possível. (Se, frente à primeira depilação “cavada”, surgida com o biquíni asa-delta, lá por 1985, tivéssemos agido com firmeza, talvez não descambássemos para estes púbis glabros e assépticos, que remetem menos ao sexo do que ao piso do banheiro.) Eis como o filósofo descreveu, há mais de cem anos, a ameaça que já pairava debaixo de nossos narizes: “Este ódio de tudo que é humano, de tudo que é ‘animal’ e mais ainda de tudo que é ‘matéria’, este temor dos sentidos... Este horror da felicidade e da beleza”, esta “vontade de aniquilamento, hostilidade à vida”.
Lá por 2184, imagino, haverá entre os olhos e a boca apenas um calombinho, metade de um gogó, sem furos, mas ainda não estaremos satisfeitos. Depois do nariz, serão as orelhas. Depois as unhas. Depois os dedos. Depois as mãos, os braços, as pernas, o tronco. Por algumas décadas, seremos apenas um olho – azul – a planar por um mundo holográfico. Até que os cientistas conseguirão a proeza de prescindirmos mesmo do olho. Nos converteremos num retângulo de plástico, num iPhone preto, sem fluidos, sem odores, imunes às rugas, ao amor, ao sexo, à fome, à sede, à saudade e o sentido da vida será enfim claro e comum a todos: encontrar a tomada mais próxima.
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