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sábado, 29 de maio de 2010
29 de maio de 2010 | N° 16350
CLÁUDIA LAITANO
O Entrevero e o Big Mac
Muito antes de o termo globalização chegar às conversas de bar, o Big Mac já era seu garoto-propaganda. O McDonald’s, que está completando 70 anos com filiais em 119 países, inventou não apenas os princípios da fast-food, mas o próprio conceito de comida padronizada (não necessariamente saborosa, mas relativamente insuspeita).
O verdadeiro molho especial do sanduíche mais famoso do mundo não é a gororoba estranha sobre o hambúrguer, mas a previsibilidade – a promessa mais ou menos implícita de que não seremos surpreendidos por sabores exóticos, bata a fome em Burkina Faso ou em uma esquina da Champs-Élysées.
Ninguém com mais de oito anos de idade sai de casa com o objetivo de degustar Big Macs do outro lado do planeta, mas quem viaja muito sabe o valor de encontrar um McDonald’s aberto quando nada no horizonte gastronômico parece amigável.
Para entender o significado de um Big Mac, basta imaginar o espanto de um estrangeiro diante de um legítimo Entrevero Gaúcho, aquele sanduíche que jamais poderia ter sido criado (ou consumido) em nenhum outro lugar do mundo que não o nosso: cebola, tomate, pimentão, todas as carnes do açougue mais próximo e mais duas fatias de pão para disfarçar. (O estômago gaúcho é um forte.)
No documentário Mondovino (2004), o diretor americano Jonathan Nossiter usava o universo da produção de vinhos para refletir sobre os riscos da globalização. Percorrendo regiões como Bordeaux, Napa, Toscana e até mesmo o interior de Pernambuco, Nossiter mostrava a crescente padronização da bebida, cada vez mais suscetível ao gosto médio dos consumidores e à preocupação das vinícolas em não perder clientes.
O enólogo francês Michel Rolland, consultor de dezenas de vinícolas espalhadas em 13 países, inclusive o Brasil, é apontado como um dos agentes dessa padronização dos vinhos em escala global. Um dia, sugere Nossiter, todos os vinhos serão produzidos de forma tão parecida, que as perdas das riquezas locais serão irreversíveis. E o que vale para o vinho pode valer também para a música, as roupas, a arquitetura, a comida... Bye, bye, Entrevero.
Na semana passada, perguntei a um dos maiores especialistas em vinhos do mundo, o brasileiro Dirceu Vianna Junior, radicado em Londres, se ele concordava com a tese de Nossiter de que a globalização estava ameaçando o vinho de “terroir” (próprio de uma área limitada e inimitável).
Dirceu me disse que os vinhos “padrão” estão mesmo se multiplicando, mas essa tendência de globalização convive com a valorização cada vez maior dos sabores locais.
Essa lógica confirma a tese do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que aos 84 anos é um dos analistas mais interessantes das questões típicas da nossa época. Para Bauman, estamos cada vez mais interconectados e interdependentes, é verdade, e tudo que acontece em algum lugar do planeta tem impacto em todos os outros.
Mas o que compartilhamos se traduz em diferentes línguas e em diferentes culturas, e é pouco provável que a nossa interdependência resulte em uniformidade, como as análises mais catastróficas da globalização previam.
O Big Mac não matou o Entrevero. Pelo contrário: seu peculiar sabor local tornou-se um valor em si mesmo. Que aproveitem os fortes.
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