sábado, 29 de maio de 2010



30 de maio de 2010 | N° 16351
PAULO SANT’ANA


Trânsito megalomaníaco

Não me sai da cabeça o relato do jovem que tirou a fotografia do velocímetro de seu carro, em plena freeway, marcando 195 km/h, e jactava-se perante seus amigos dessa façanha.

Uma semana depois, sexta-feira, esse jovem morreu estraçalhado por um choque na direção do seu carro.

A autoestima hipertrofiada, ou seja, a megalomania, está sempre por trás dos desvios do comportamento humano.

Esse jovem que mostrava a todos a velocidade desumana que conseguiu atingir na freeway esperava encontrar nos outros a admiração originada em sua jactância.

Ele se considerava, ao trafegar a 195 km/h, um deus, um avatar, um ser acima dos outros todos, um batedor de recordes transgressivos que o colocavam também acima da lei e de qualquer preceito ou regramento de bom senso.

A megalomania, que, repito, preside grande parte dos transtornos psíquicos, consiste no extremo prazer em sentir-se superior aos outros.

Para esse jovem, a freeway foi construída para ele exercitar essa superioridade exibicionista.

Mas o interessante é que não bastava para ele a consciência de que era superior aos outros: ele tinha que obter dos outros a confissão da superioridade dele.

É inseparável da megalomania o reconhecimento alheio: “Todos precisam saber que eu sou o maior, o imbatível, o inigualável”.

“Venham agora todos vocês, sentem no banco da frente do meu carro e no banco de trás e vejam do que sou capaz no volante. Convido-os para a febricitante aventura de mim no volante, não há quem se equipare a mim nas ruas, nas avenidas, nas estradas, nem sei como eu mesmo, com tão poucos anos de direção, consigo ser tão hábil e tão rápido nas minhas manobras e impulsos.”

E convida a todos, em horas e dias diferentes, a entrar no seu carro e ver como os outros motoristas do trânsito não passam de babacas coadjuvantes de sua louca aventura.

Pior é que alguns que embarcam em seu carro vão também de encontro à morte.

O megalômano do trânsito é tão megalômano, que ele nem pensa na morte.

Ele acha que é tão eficiente na sua ousadia do volante que se torna capaz de evitar todo e qualquer acidente.

O megalomaníaco do trânsito entende que ele dominou em definitivo a matéria e só podem morrer no trânsito as pessoas que não têm a sua versatilidade malabarista no volante.

Mas não basta para ele saber que é exímio no volante: é preciso, antes de tudo, que todos reconheçam que ele é um ás incomparável no volante.

Só depois ele vai dormir tranquilo, sem lhe passar nem de leve pela mente que pode a qualquer momento morrer em um acidente.

E, na semana seguinte, numa manobra arriscadíssima, ele perde a vida no trânsito, como aconteceu sexta-feira com o jovem da fotografia do velocímetro.

Um dia, os megalomaníacos do trânsito escapam com vida de suas loucuras. No outro dia, escapam também.

Quanto mais escapam, mais ousados se tornam no trânsito.

Mas qualquer criança sabe que um dia não escaparão.

Em breve.

E se um só desses megalômanos do trânsito estiver me lendo e com isso o meu texto vier a salvar a sua vida, um só, já me basta.

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