sábado, 22 de maio de 2010



Os que teimam em sonhar, sonhar, sonhar



ENCONTRO UM livro no sebo de que sou freguês, um pouco adiante da estação de Putney Bridge, logo ali, e compro. Na verdade, levo três. Mas é sobre um que quero falar: Jules e Jim, do francês Henri-Pierré Roché.

Foi transformado num filme, hoje um clássico, por Truffaut, com o mesmo nome. Não poderia ser diferente. O que impressionou Truffaut, quando descobriu o livro, em 1955. foi exatamente o nome. A sonoridade, originalidade dele.

Basicamente, é a história de dois homens, Jules e Jim, que compartilham convicções, causas, charutos — e mulheres. Coisas de franceses.

Truffaut, fora o título, ficou impressionado com a idade de Roché. Era seu primeiro romance. Ele tinha mais de 70 anos. Jules e Jim passou despercebido. Os resenhistas não o notaram, e muito menos os leitores. Mas Truffaut, então ainda um jovem aspirante a cineasta, sim, e isso mudaria tudo.

O homem que começava a vida se aproximou do homem que a encerrava, unidos por um livro do qual um era o autor e outro um leitor. Roché tivera uma jornada movimentada ao longo dos anos. Seu círculo de amigos artistas era notável. Era muito amigo de Marcel Duchamp, e foi ele quem aproximou Picasso dos americanos quando o apresentou a Gertrud Stein.

Truffaut disse ao velho que pretendia filmar Jules e Jim.

Roché ficou entusiasmado. Tentou apressar o projeto do jovem amigo, até porque o tempo não corria a seu favor, mas não teve sucesso. Truffaut tinha sua agenda e suas prioridades. Quando Jules e Jim foi lançado, no final dos anos 50, Roché já estava morto.

Não viu o sucesso póstumo de seu romance desprezado ao chegar às livrarias. Por causa do filme, o livro foi traduzido em várias línguas. É uma história parecida com a do sueco Stieg Larsson, o autor da Trilogia Millennium. Uma estréia também tardia: 50 anos.

Mais cedo que Roché, é certo, mas mais tarde que quase todo romancista relevante. De Balzac a Flaubert, de Machado de Assis a Dostoievski, de Eça de Queiroz a Jorge Amado, de Tolstoi a Graham Greene, antes dos 30 o grande escritor já apresentou as armas.

E a notoriedade depois da morte.

NUNCA É CEDO DEMAIS NEM TARDE DEMAIS SEGUNDO ELE

Há um outro ponto comum entre ambos. Um detalhe não de todo insignificante. O nome Lisbeth, que não é tão comum assim. Lisbeth Salander, a hacker sociopata de tatuagens e piercings no corpo miúdo, é a razão maior do fenômeno da trilogia. Lisbeth, em Jules e Jim, é o nome de uma das filhas da mulher mais importante na vida de Jules e Jim. Lisbeth aqui, Lisbeth ali. Não me lembro de Lisbeth nenhuma em todos os demais livros que li em minha vida.

Mais que tudo, há uma beleza singular na história de Roché e Larsson. A capacidade de sonhar num momento da vida em que quase todos nós já somos cínicos e descrentes, e já aposentamos nossos projetos e ideais. Epicuro escreveu que nunca é cedo demais e nem tarde demais para começar nada, mas quem acredita nisso exceto sonhadores como Roché e Larsson?

Quando Susan Boyle disse, na primeira vez que apareceu na televisão, que queria ser cantora profissional, foi recebida com gargalhadas pela platéia. Tinha quase 50 anos. A recepção detestável do auditório, paradoxalmente, virou parte da glória de Susan Boyle.

O Jim de Roché, “alto e fino”, era ele mesmo. Assim como Mikael Blomqvist, de Larsson, é na essência autobiográfico, um jornalista de esquerda decidido a arriscar a vida no combate a vilões.

Truffaut prestou uma derradeira homenagem a Roché. O ator que interpretou Jim foi escolhido pela semelhança com Roché. Era alto e fino.

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