quinta-feira, 7 de janeiro de 2021


07 DE JANEIRO DE 2021
L.F. VERISSIMO

Cabelos azuis

Quando as histórias em quadrinhos começaram a ser impressas a cores notou-se que seus heróis ou tinham cabelos loiros, ou, estranhamente, cabelos azuis. Vez que outra aparecia alguém de cabelo preto nas historinhas coloridas, mas era raro. O comum era o azul.

Não me lembro de, garoto, dar muita atenção ao fato. Era natural que, além dos seus poderes, os super-heróis também pudessem escolher a cor dos seus cabelos, inclusive o azul, por que não? Só anos mais tarde me dei conta: cabelos pretos significavam que o personagem era negro ou latino. Amarelo ou azul, que o personagem era indiscutivelmente branco. Naquele tempo, na América, a distinção racial era importante. Continua sendo, mas confesso que sei pouco sobre o que os super-heróis de hoje têm na cabeça, e de que cor. Talvez ainda seja o azul.

Corte rápido. Li que no Ano-Novo o céu de Trancoso, na Bahia, se encheu de aviões particulares querendo descer, a ponto de criar um problema para as autoridades da Aeronáutica. Que, sem entender de hierarquia social e da lista da Forbes, não sabia a quem dar prioridade para o pouso. Felizmente não houve uma tragédia, que eliminaria boa parte do PIB nacional. O pessoal chegava a Trancoso para se divertir em várias aglomerações e quem aparecia com máscara era vaiado e chamado de maricas. As festas atravessaram a noite de ano-bom e qualquer um podia entrar, desde que mostrasse prova de ter sonegado impostos no ano que acabava e de saber a senha da elite brasileira. Que - isto pouca gente sabe - é "cabelos azuis".

A senha não significa que a elite brasileira tenha cabelos permanentemente azuis que a identificam e garantem seus privilégios. Os cabelos azuis do código dos ricos significam o mesmo que significavam nas histórias em quadrinhos: são fronteiras bem definidas e intransponíveis de classe. E se você protestar que essas fronteiras protegem uma elite criminosa na sua inconsciência, vai ver é por inveja das festas que eles dão. Sem falar nos aviões particulares.

L.F. VERISSIMO

Nenhum comentário: