04 DE JANEIRO DE 2021
CLÁUDIA LAITANO
Hermanas
Cultuar o passado, os antepassados, os velhos costumes, a tradição e o jeito como tudo sempre foi tem a enorme vantagem de garantir a coesão de uma família, uma comunidade, um país. Infelizmente, nada se torna bom ou legítimo apenas porque é um hábito antigo. Tradições podem ser injustas, cruéis e até estúpidas. Costumes tornam-se ultrapassados quando a sociedade muda, e o mesmo acontece com a Justiça: leis podem perder o sentido, a ponto de precisarem ser reescritas ou simplesmente abandonadas.
O problema é que ventos de mudança geram desacomodação e desconforto. Nessas circunstâncias, o passado é o único território onde o sonho de uma vida protegida de imprevistos ainda parece viável. Ao contrário do presente, sempre em movimento, e do futuro, sempre imprevisível, o passado está congelado no tempo. Não morto, porque ainda afeta nossas vidas, mas suficientemente constante para que seja encarado como um modelo ideal em momentos de instabilidade. Não por acaso, as fantasias nostálgicas são o último refúgio dos políticos sem capacidade, ou interesse, de se colocar a serviço da democracia. Prometa que o mundo vai parar de girar e sempre vai aparecer uma legião de voluntários dispostos a bombardear os eixos da Terra em nome da paz.
A inércia, por sua vez, também trabalha pela conservação dos costumes, das tradições e das leis que perderam o sentido. Para mudar qualquer coisa, é preciso esforço, mobilização, negociação, paciência - e esperança. Essa foi a aula magna sobre democracia que as argentinas nos deram na semana passada. Por mais de 20 anos, mulheres de todos os espectros políticos se uniram para lutar pela legalização do aborto - dialogando, aparando diferenças, buscando representação política, manifestando-se nas ruas e dentro de casa. Estabeleceram três reivindicações básicas para a campanha: "educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer". Foram derrotadas pelo menos cinco vezes no Congresso, mas continuaram acreditando que era possível mudar aquilo que um dia foi considerado um consenso inabalável. Não era.
No Brasil também não precisa ser.
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