terça-feira, 21 de novembro de 2023


21 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Tentando ler o jornal para o pai

Minha esposa costuma ler o jornal para seu pai. Ele está acamado há quatro anos, com sequelas da parada cardíaca. Não fala, circula apenas de cadeira de rodas e tem restritos seus movimentos de parte do corpo.

Ela preserva, oralmente, o hábito paterno de acompanhar as últimas notícias. A toalha de mesa e os cadernos de jornal abertos formam o mesmo tecido no café da manhã entre os dois.

Só que Beatriz escolhe as manchetes. Não quer desanimar Jair, não quer tirar dele a esperança no mundo. Ela lê em silêncio: "Mortes e cheias: pelo menos três pessoas morreram por causa da forte chuva de sexta-feira e sábado no Estado".

Sente calafrios com o retorno da cheia do Rio Taquari, que resultaria em milhares de desabrigados novamente. Já raciocina que passam de 50 mortes devido às enchentes desde setembro. O horror da chuva e dos ciclones não tem fim.

Ela pula a notícia. Tenta ir para os acontecimentos no país.

"Um turista de Mato Grosso do Sul foi morto a facadas na madrugada deste domingo por dois homens durante um assalto na Praia de Copacabana, na zona sul do Rio. A vítima, Gabriel Mongenot Santana Milhomem Santos, de 25 anos, estava na cidade para o show da cantora Taylor Swift, previsto para este domingo, no Engenhão, na Zona Norte."

Vinte e cinco anos? Quatorze facadas? Facão de cozinha? Na praia?

Não acredita no que está escrito: "Os suspeitos do crime, Alan Ananias Cavalcante e Jonathan Batista Barbosa, haviam deixado a cadeia horas antes do assassinato. Na sexta-feira, eles foram presos por um furto nas Lojas Americanas - de 80 barras de chocolate. No sábado, foram liberados pela Justiça após audiência de custódia".

Conclui que o trabalho da polícia é desperdiçado: os assaltantes são presos e logo soltos. Um dos envolvidos, Anderson, reconhecido por testemunhas, tem 14 anotações criminais e já foi abordado 56 vezes.

A Justiça brasileira é uma porta giratória.

Beatriz lembra que uma turista, também de Mato Grosso do Sul e fã de Taylor Swift, Ana Clara Benevides, 23 anos, teve uma parada cardiorrespiratória no meio do show da artista norte-americana no Engenhão, não resistindo à sensação térmica de 60ºC no Rio.

Ondas insuportáveis de calor no Sudeste e tempestades no Sul?

Ela pula as tragédias outra vez.

Vai para a política e vê que o governador Eduardo Leite, que se mostrava contrário ao aumento de impostos, está propondo subir o ICMS de 17% para 19,5%, sob a justificativa de o Estado não perder R$ 4 bilhões por ano na transição da reforma tributária. Sobrará para o consumidor e contribuinte pagar a conta.

De olhos esbugalhados, Jair espera que a filha fale alguma coisa. Beatriz suspira, engole as palavras a seco e silencia. É melhor que o pai se mantenha desinformado do fim do ano.

A toalha de mesa e os cadernos de jornal abertos formam o mesmo tecido no café da manhã entre os dois: uma mortalha da impunidade. Ela poderia repetir para o pai a frase atribuída ao ex-presidente da França e general Charles de Gaulle: "O Brasil não é um país sério".

Mas nem isso é real, a sentença veio da Embaixada do Brasil em Paris, em 1963. Parece que vivemos sempre longe da verdade.

CARPINEJAR

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