11 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR
Oi
Sem exagero, metade de minha biblioteca eu formei na Feira do Livro de Porto Alegre. Gastava nas bancas da Praça da Alfândega meu salário inteiro de estagiário. Adquiria obras por valores que jamais obteria nos preços cheios das livrarias no decorrer do ano.
Além disso, desde adolescente, eu esperava avidamente o fim de outubro para pegar autógrafos dos meus autores prediletos.
O evento tradicional servia para ter um raro contato, mesmo que fosse breve, com quem admirava. Talvez pudesse abraçar e vencer a barreira da mesa, talvez pudesse ser inesquecível com comentários bonitos e gratos como "você mudou a minha vida" ou "obrigado por existir", talvez roubasse um sorriso ou uma piada do escritor acomodado humildemente, à espera de seu público.
Eu ensaiava meu discurso durante os pequenos passos nas intermináveis filas que contornavam o Pavilhão de Autógrafos. Não reclamava da demora, pois assim escolheria melhor o que dizer. Quem sabe citar um parágrafo marcante, ou destacar um personagem de minha fascinação, avisando que eu me parecia com ele?
O que falar para quem alegrou a minha solidão de leitura? Seriam cinco minutos disponíveis. Procurava me concentrar para não perder a oportunidade. Expectativas gerariam balbucios, engasgos. Um dos momentos mais aguardados de minha juventude foi cumprimentar Luis Fernando Verissimo. Até porque seria um desafio arrancar algum diálogo dele, tinha a fama de esfinge. Seu silêncio o precedia.
Eu já havia colhido dedicatórias de Mario Quintana, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, Adélia Prado, Ziraldo. Faltava a caneta azul de Verissimo para a minha coleção, para assinalar as vozes que ecoavam dentro da lombada do caráter.
Verissimo é, ao lado de Rubem Braga, aquele que faz parecer fácil o que é extremamente difícil. Sua clareza comove porque essencializa dilemas da existência em pouquíssimas pinceladas. É como uma escrita feita para ser encenada. Suas crônicas saem do papel para, magicamente, surgirem em nossa frente. Ele apanha a realidade para devolvê-la melhorada. A crueldade do cotidiano vem editada em comédia. Ter um livro novo dele sempre representou os picos da minha ansiedade.
Eu lembro que, quanto mais me aproximava, mais o meu batimento se acelerava desordenadamente. Eu ia extraviando as frases ao longo da andança até o tablado. Como um saco furado que vai deixando o conteúdo pelo caminho. Não duvido que fazia um rastro atrás de mim. Meu discurso foi se encurtando. Fui cortando linhas do texto mental. Quando me postei diante dele, falei somente, com muito esforço:
- Oi!
Estendi a mão suada de nervosismo, apanhei o livro e cheirei o autógrafo. O livro mudava de perfume com a tinta de seu nome na folha de rosto. Havia conhecido Luis Fernando Verissimo, ninguém me arrancaria essa vitória. Dei espaço para o próximo leitor anestesiado de alegria, não me importando com o fracasso total de minha comunicação. Bastava a presença sincera. Aliás, o encontro poderia ter sido um fiasco perante qualquer autor, menos para Verissimo, pois consegui ser mais tímido do que ele.
Neste sábado, autografarei Manual do Luto, meu novo livro, às 19h. Eu queria dizer a cada leitor de minha fila que eu já estive aí tantas e tantas vezes, por isso, vou esperá-lo de pé, jamais sentado. Eu também faço fila por você. Meu "oi" continua o mesmo.
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