Latidos estranhos na Capital
A vida do interior é mais próxima das estrelas, do vento, dos sons e do brilho da natureza. As formigas avisam se vai chover ou não, é possível antever pela espessura da neblina a força do sol que virá. Tudo está interligado, o tempo com o espaço, o dentro de casa com a rua.
Como filho da serra gaúcha, eu noto essas diferenças absurdas de sensibilidade. Só que fiquei maravilhado com a observação de um amigo. Ele trouxe à baila uma sutileza de comportamento que jamais havia cogitado e que fornece a real dimensão do que representa uma rotina longe das capitais.
Ele, que sempre morara no interior, estabeleceu-se em Porto Alegre nos últimos meses para cuidar do filho com apendicite. E não vem conseguindo dormir.
Era de se esperar que fosse pelo receio da violência, pela desconfiança generalizada, pela confusão caótica e frenética da metrópole, pelas buzinas dos carros depois de um jogo de futebol, pela gritaria nas calçadas na saída dos bares.
Mas sua insônia se deve aos latidos dos cachorros.Não aos latidos em si, mas ao caráter e à peculiaridade dos latidos. Como ele reside numa fazenda, num local tranquilo, silencioso, previsível, todo latido é uma emergência, um aviso, um alerta de que algo está errado, fora do padrão. Pode ser uma invasão, ou um bicho diferente no terreno, ou o trotear de relâmpagos nas coxilhas, anunciando um evento climático adverso.
Em seu lar afastado do centro de São Borja, os cachorros, treinados para proteger e advertir, só latem por necessidade. A audição virtuosa dos cães e seu faro extraordinário representam alarmes naturais de alguma anormalidade.
O latido nem vem solitário, não é como tosse, como espirro, como um reflexo avulso, esparso, incidental. Um latido chama o outro, até se formar um coro de lobos uivando.
Eles nunca param quietos. Estão sempre vigiando e controlando, como sentinelas da noite. Descansam apenas durante o dia, com o trabalho cumprido, procurando a laje mais fria ou um lugar debaixo das cadeiras.
Agora, no apartamento do filho na Cidade Baixa, meu amigo escuta latidos e se assusta à toa. Pensa que vem acontecendo um problema, abre a janela, procura a ocorrência, e não é nada. Ele descobriu que os cachorros ganem sem propósito, sem finalidade. Mostram-se fiasquentos, exagerados, carentes. Latem por latir, para chamar atenção, por qualquer coisa.
Soltam latidos vadios, desocupados, levianos. Latidos que mais se assemelham às fofocas do que às notícias.
São cachorros-pessoas.. Ele desabafou: - Aqui, os cachorros têm mais medo do que seus donos.
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