Eternidade do engano
Compramos, e esquecemos.
Já aprendemos a guardar notas e recibos para garantir devoluções, mas ainda não nos certificamos do estado do objeto no balcão. Não há aquele toque final de capricho para ver se o produto adquirido está correto, se fecha exatamente com as nossas intenções, com o que manuseamos, se não é uma peça do mostruário, com algum defeito.
Não conferimos as compras. Não cultivamos esse costume, essa atenção especial, esse detalhe derradeiro. Trocas podem ser inviáveis nas compras realizadas durante viagens a Estados diferentes ou ao Exterior.
Eu adquiri um presépio na Feira de Artesanato Criativo de Sevilha, que acontece na frente da Catedral, na Espanha. Era uma surpresa natalina para a minha mãezinha religiosa. Ela é presepeira mais do que adepta do Papai Noel.
O presépio que ela tem exige grandes produções. Quis oferecer uma miniatura mais prática, porém com a beleza da escultura em barro bem-acabada.
O atendente empacotou todas as peças para o transporte aéreo. Acondicionou-as em plástico bolha numa caixa. Confiei, e rezei para que não quebrassem durante o longo trajeto. Levei a sacola comigo até Porto Alegre, como item pessoal. Jamais despacharia, sob o risco de quiques e colisões com malas na esteira.
Entreguei a lembrança imensamente feliz, convicto do sucesso da escolha. É difícil acertar um presente para a mãe porque ela gosta de tudo e nunca sei do que realmente gostou. Ela armou o presépio e me mandou uma foto com uma pergunta: - É assim mesmo, sem o menino Jesus?
Claro que não. Poderia ter faltado a vaca, o burro, qualquer animal, abriria mão da estrela, encontraria atenuantes para o sumiço de um dos Reis Magos, mas não dava para contornar a ausência de Jesus. A celebração gira em torno dele.
Descobrimos tarde demais que a manjedoura veio vazia. Jesus ficou em Sevilha. Como trazê-lo? Sem chance. Afora transtornos da remessa internacional (e se o pequeno Messias fosse parado na alfândega?), não tínhamos o contato do artesão. Da mesma forma, promoções são traiçoeiras.
Minha esposa comprou um par de botas marrons e longas em dezembro. Aproveitou a liquidação, a baixa de preço do verão. Ela só foi usar as botas no inverno, no meio do ano, e descobriu que vieram uma bota 35 e outra 37. Beatriz está com um calçado de cada par.
São calçados solteiros. Não tem como trapacear usando um pé mais folgado, porque seu número é 37 - um deles se mostraria absolutamente apertado. Muito menos existe a esperança de devolver tanto tempo depois. As explicações seriam inverossímeis.
Ela sequer conta com a chance de dar a alguém. As botas hibernam na caixinha, inúteis, dentro da eternidade do engano.
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