sábado, 25 de novembro de 2023


25 DE NOVEMBRO DE 2023
ELIANE MARQUES

BATISMO DE SANGUE

Isabel - Eu não sei o que fazer da minha vida. Sou um fracasso total. Tudo o que fiz até agora não me valeu de nada, de nada valeu todo o tempo de estudos, de trabalhos e de sacrifícios, indo e vindo de empregos como babá, empregada doméstica, cozinheira, cuidadora de pessoas doentes, aguentando desaforos de brancos até passar nesse concurso para o Judiciário, de nada valeu. 

Tem um poeta que diz que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Acho que minha alma é minúscula, do tamanho de um grão de arroz. Nunca quis ter filho, também nunca quis me casar; mas, ao mesmo tempo, não queria ficar velha e solteirona como minha tia Maria. Ela mesma dizia que uma mulher deve casar para cumprir sua função no mundo. Foi assim que conheci o Zacarias, no Judiciário, e resolvi casar.

Analista - Casar com quem?

Isabel - Casar com o Zacarias, ora. Ele queria ter filhos. E eu acabei tendo um filho. Um filho deficiente.

Analista - Isabel, Maria, Zacarias e Deficiente.

Isabel - Não, o nome do meu filho é João, como João Batista. Só não tive tempo de falar antes que tu me perguntasse.

Analista - Eu perguntei o quê?

Isabel - Não perguntaste se o nome do meu filho era Deficiente?

Analista - (...)

Isabel - Não importa. Ele me chama de burra o tempo todo, diz que eu não sei fazer nada, atira a comida do prato no chão quando não gosta, não me deixa sair nem para minhas caminhadas matinais. Ele tem 12 anos, mas às vezes parece que tem a idade do pai, sempre pedindo a minha cabeça numa bandeja de prata.

Analista - A idade de que pai?

Isabel - A idade do pai dele.

Analista - Achei que fosse a idade do teu pai.

Isabel - Tudo o que o pai diz para mim, ele também diz. Esses dias, o pai me chamou de vagabunda e, logo depois, o João também me chamou de vagabunda. Outro dia, uma amiga foi me visitar em casa. Quando o Zacarias chegou, estávamos tomando cachaça feita com uns frutinhos, algumas jabuticabas que trouxe da casa dos meus pais. O Zacarias começou a dizer para minha amiga que eu era viciada em álcool, que eu era alcoólatra. Quase morri de vergonha. Eu tentava explicar para minha amiga que eu não era alcoólatra, mas o João imitava o pai e não parava de repetir que eu era alcoólatra. Eu bebo de vez em quando, ao contrário do Zacarias, que bebe todos os dias. Nesse furdunço todo, o João começou a berrar sem trégua, eu fiquei com raiva do Zacarias, peguei a garrafa de álcool e quebrei na pia da cozinha. O João começou a juntar os cacos e se cortou os dedos. Parecia um batismo de sangue. Foi uma cena horrível. Eu me senti culpada.

Analista - Culpada de ter batizado teu filho com o nome que não era o dele?

Teresa - Não sei. Acho que eu não queria ter tido um filho e fui castigada por deus.

Analista - O teu marido Zacarias é um deus, então.

Isabel - (...) 

Analista - O teu filho João, um profeta representante de deus, então.

Isabel - Vai ver estou fazendo sacrifícios para os deuses errados.

Analista - Ficamos por aqui, hoje.

Isabel - Axé.

Analista - Até!

ELIANE MARQUES

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