Polêmica do Hino Nacional
Na minha infância, fiscalizávamos os jogadores de futebol antes das partidas da Seleção para conferir se eram brasileiros de coração e cantavam o hino com vontade. Alguns, temendo a represália, faziam mímica e somente abriam a boca.
Devo ser da última geração que incorporou o Hino Nacional. Até porque ele era tocado toda manhã antes do início das aulas. Não tinha como não aprender. Mas confesso que foram anos de superação de gafes. A letra de Joaquim Osório Duque-Estrada, acrescentada na melodia de 1831, não é das mais digeríveis. Dependemos de um dicionário ao lado, ou da presença do nosso tataravô.
Já bobeei algumas vezes com "se ergues da justiça a clava forte". Demorei a constatar que "clava" existia, e era uma arma.
Não entrava em minha cabeça que "garrida" não representava uma falha indesejada de pronúncia, significava "graciosa". "Impávido colosso", então, mostrava-se com sentido enigmático. Fui aos poucos conhecendo a nossa imensidão destemida.
Como achar que "lábaro" queria dizer "bandeira"? Era um pega-ratão da prova oral. Tampouco compreendia o que fazia um seio perdido ali, um topless em nossa liberdade. Não há mais como cobrar que se tenha o hino decorado na ponta da língua. Não reproduzi-lo verbalmente não significa ausência de patriotismo, de enraizamento, de cuidado ufanista.
Seria bonito que as crianças descobrissem o hino, sem dúvida, mas sua composição é muito adulta e combina mais com a adolescência. Se o hino passasse pelo crivo do Programa Nacional do Livro Didático, acabaria classificado como adequado ao Ensino Médio.
O que tradicionalmente acontece é cantar sem entender o que está cantando, ou cantar errado por toda a vida, jamais percebendo os enganos, deduzindo as estrofes, trocando termos complexos por palavras mais cotidianas.
A cantora Ludmilla quase foi cancelada porque emudeceu em parte do Hino Nacional antes do Grande Prêmio de São Paulo de Fórmula 1, no domingo. Muitos entenderam que ela não dominava a composição.
No vídeo que circulou nas redes sociais, a voz de Ludmilla desaparece logo após o trecho "ouviram do Ipiranga as margens plácidas". Uma falha técnica gerou um debate interminável. A artista passou a ser acusada de descaso com o país.
A cobrança pelo verde-louro da flâmula foi tão contundente que ela deu o troco e reprisou a apresentação no Prêmio Multishow, na noite de terça-feira. Para expor incontestável fluência, cantou à capela, destacando cada verso, dessa vez imune a tropeços aparentes.
Não acho vergonhoso não memorizar o hino de imediato. Qualquer um pode assimilá-lo, como eu, no decorrer da prática.
O que considero como antipatriotismo é o ato de furar fila, a malandragem, o descaso com o patrimônio público, a desobediência à lei e à ordem, o pouco apreço pela educação e pelo professor, a truculência no trânsito, a briga das torcidas, a completa indiferença à dor do outro. Uma nação é civilizada pelo seu silêncio, pela forma como demonstra o respeito sem palavras: pelo caráter.
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