31 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR
Barbie é Pinóquio
Nada se cria, tudo se transforma. O filme Barbie tem como pano de fundo a história de Pinóquio. A versão feminina ocultou a origem, mas é igualmente a trajetória acidentada do herói em busca da humanização. A boneca de plástico vive em um mundo rosa de mentiras felizes chamado Barbielândia, viaja até a realidade da complexidade de sentimentos, é ridicularizada, sofre, começa a chorar e a rir, encontra-se com sua criadora e quer ser uma mulher de verdade. Ou melhor, da verdade.
É o mesmo eixo da narrativa do italiano Carlo Collodi, adaptada por Disney. Gepeto é Ruth Handler, cofundadora da empresa norte-americana Mattel, que concebeu o brinquedo de feições crescidas homenageando a sua filha Barbara.
O grilo falante é Gloria, mãe que pena com o distanciamento de sua filha adolescente e se torna a conselheira e incentivadora nas primeiras crises de identidade de Barbie. O parque de diversões de Pinóquio é Venice Beach, um dos pontos turísticos mais importantes de Los Angeles, que assume na ficção o território da maldade (assédios e flertes inconvenientes).
A baleia é a empresa Mattel, com seu estômago de corredores e salas intermináveis, que não aceita falhas e deseja tirar de linha as bonecas com defeito. Com direção de Greta Gerwig (Lady Bird) e tendo como protagonistas Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera, a obra é essencialmente ideológica, no sentido de que conversa mais com o público do que propõe perguntas para os próprios personagens. São desfiladas tiradas sarcásticas, quase como stand-up crítico sobre o nosso estilo descartável de vida.
Num tom ingênuo, agridoce e exclamativo, faz o espectador se dar conta dos absurdos da sociedade moderna e dos preconceitos sexistas em relação às mulheres. O melhor do filme está fora do filme, na narração irônica em off apontando o que permanece como uma ditadura da imagem e das convenções.
Existe, entretanto, uma perigosa adulteração da realeza da Barbie, como se ela nunca tivesse sido alienante e consumista, como se nunca tivesse padronizado um ideal de beleza irreal, com as medidas anoréxicas de um corpo impossível de modelo, de cintura fina e pernas longas.
Se antes dela realmente as meninas brincavam com bonecas bebês para aprenderem a ser mães, depois dela, as meninas passaram a brincar com o protótipo adulto para aprenderem a ser esposas. Barbie já foi a tipificação americana da submissão doméstica, da companhia posada, passiva e dependente, apenas preocupada com o guarda-roupa, a enfeitar o universo patriarcal.
Surge agora como um ícone revolucionário da diversidade desde a sua origem, promovendo versões de Barbie de todas as etnias e profissões. Bem sabemos que essa inclusão apenas se consolidou nos anos 1990, na carona das transformações inexoráveis da representação da estrutura familiar nas mídias.
Nesse escopo, Barbie seguiu a maré. Não ditou a evolução dos direitos feministas, porém acompanhou os progressos, convertendo os novos ideais em dinheiro e consumo. Incute-se a ideia de que a Barbie sempre sinalizou as escolhas infinitas da mulher, muito além da maternidade e do casamento, principalmente ao retratar 180 carreiras recentemente.
Nos seus primórdios, era mais conhecida pelas tendências da moda e troca de figurino do que pelas mutações de comportamento. Tanto que a Barbie nasceu olhando para os lados, com medo, com recato, não querendo incomodar, não podendo encarar de frente seu parceiro masculino. Sua aparência só mudou em 1971, quando o seu olhar terminou ajustado para a frente.
O filme põe agora os olhos da Barbie para si mesma. É uma outra rotação, outro ponto de vista. Não espere romance e beijo salvador de Ken. Não há final feliz. Pois o homem ainda se mantém estereotipado, não definiu o seu lugar, só sabendo reagir por extremos: a favor ou contra a mulher.