quarta-feira, 4 de abril de 2018


04 DE ABRIL DE 2018
NÍLSON SOUZA

O homem que salvou Cristo


A encenação da crucificação de Jesus na cidade gaúcha de Nova Hartz, na última sexta-feira, gerou uma cena inédita na história milenar do cristianismo: um homem invadiu o palco e agrediu com um capacete de motociclista o soldado romano que se preparava para espetar a lança no crucificado. Posteriormente, ficou-se sabendo que o agressor tem histórico de distúrbios mentais, e o incidente acabou sendo considerado mais uma curiosidade engraçada do que propriamente um caso policial. Também achei graça do vídeo, mas, depois, fiquei pensando que o episódio merece uma reflexão mais aprofundada, tanto por evidenciar a confusão entre realidade e fantasia em tempos de fake news quanto pela simbologia em relação ao momento político do país.

E se aquele homem transtornado estivesse com uma arma? Dessa tragédia, mesmo imobilizado pelos cravos que o prendiam à cruz, parece que o Nazareno nos livrou. Nem sempre nos livra, porém, dos surtos psicoemocionais que transformam pessoas normais em feras do cotidiano, nas ruas, no trânsito, nas redes sociais e até no ambiente familiar. Basta um mal-entendido, uma divergência ideológica, e já se apresentam os justiceiros valentões, prontos para abater quem deles discorda.

O mais preocupante é que gente aparentemente centrada também mistura realidade e ficção. Não fosse assim, não nos emocionaríamos nem choraríamos em dramas televisivos e cinematográficos. Sabemos que não é real, mas a emoção supera a razão. O ator Werner Schünemann conta que, em determinada telenovela, ele interpretava um personagem tão crápula, que o próprio elenco passou a rejeitá-lo nas gravações. Nos intervalos para o almoço, ele se aproximava da mesa coletiva com a sua bandeja e abria-se um clarão entre os comensais. Ninguém queria sentar perto do vilão.

Se os próprios artistas se deixam influenciar por uma interpretação convincente, imaginem o homem do capacete, com o cérebro povoado de delírios, vendo Jesus açoitado covardemente e prestes a ser ferido. Claro que o sujeito precisa de tratamento e de acompanhamento, pois pode causar danos a outras pessoas. Mas não é o primeiro nem o único caso. Atores e atrizes que interpretam tipos maus em novelas são alvos frequentes de agressões verbais e até físicas por parte de espectadores indignados.

É fácil atribuir tais comportamentos à esquizofrenia alheia, mas os crimes passionais, as brigas de vizinhos e os conflitos políticos, só para ficarmos com alguns exemplos, mostram o quanto somos vulneráveis à emoção que cega e transtorna. Com um agravante: mesmo sem o poder de prender e soltar, de conceder ou negar habeas corpus - e sem auxílio-moradia -, somos todos juízes. Dos outros.

Assim como o homem que tentou salvar Cristo com 2 mil anos de atraso, talvez estejamos refletindo pouco antes de atirar a primeira pedra (ou bater com o capacete). E as aparências, como as encenações e as notícias falsas, enganam muito.

NÍLSON SOUZA

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