segunda-feira, 2 de abril de 2018



02 DE ABRIL DE 2018

CINEMA

Um filme belo, irredutível e árido

OBRA-PRIMA neorrealista do diretor Roberto Rossellini volta a cartaz em cópia restaurada.

Ingrid Bergman (1915 1982) deixou Hollywood perplexa quando, no auge da carreira, decidiu deixar a América e ir até a Itália para filmar com Roberto Rossellini (1906 1977). O neorrealismo italiano era, afinal, o assunto do momento desde o sucesso de Roma, Cidade Aberta (1945).

Qualquer um ficaria um tanto espantado com essa decisão: Bergman podia fazer o papel que quisesse, ganhava milhões e era paparicada por meio mundo. Em vez disso foi fazer em Stromboli (1950) uma refugiada lituana que, depois de passar por meia Europa escapando dos nazistas, chega à Itália.

No fim da guerra, como quase todo mundo ignora, pouca gente estava em seu lugar na arruinada Europa. Por toda parte havia refugiados. E é lá que Karin (Ingrid) vai parar depois de ter seu visto de entrada recusado pela Argentina.

Campo de refugiados não era campo de concentração, mas não era tão melhor assim. Karin vive com outras refugiadas e não vê futuro para si, uma apátrida, até que um ex-soldado italiano, do outro lado do arame farpado, começa a fazer-lhe a corte.

Antonio é seu nome, e ele se impressiona com Karin. Propõe-lhe casamento. Karin não vê aquilo com bons olhos: como casar com alguém a quem nem conhece?

Logo ela mudará de ideia: melhor Antonio, pensa, do que ficar sabe Deus até quando morgando naquele campo. Ledo engano.

Uma das sequências mais impressionantes do filme, aliás, consiste na chegada a Stromboli. É quando Karin se dá conta de que seu destino está ligado a uma ilha vulcânica, uma espécie de deserto de pedra, quase inabilitado. E seus poucos habitantes são pessoas tão simples quanto o marido, um pescador.

A partir daí Karin viverá uma experiência espiritual difícil de descrever, por dois motivos. Sempre haverá quem veja nisso uma espécie de estraga-prazer - essa é a razão superficial. A outra, mais profunda, diz respeito à natureza da transformação pela qual Karin passará - e onde se encontrará a beleza mais fundamental deste filme.

Pode-se dar, no entanto, uma pista: Rossellini era profundamente católico. E, ao mesmo tempo, fazer uma advertência: tinha uma fé imensa no cinema e em sua convicção central; cinema não é entretenimento, muito menos espetáculo. É um instrumento de transformação do homem.

Talvez sua atitude explique melhor o que é Stromboli do que um longo arrazoado a respeito. Pouco tempo depois da filmagem, já tendo casado com Ingrid Bergman, Hollywood ofereceu milhões para que se mudasse para os EUA (queriam Ingrid de volta, na verdade, não ele). Rossellini foi.

Leu o contrato. Bateu os olhos na cláusula em que, segundo a tradição dos estúdios, não teria direito à montagem do filme. Não teve dúvidas: comprou passagem no primeiro avião de volta para a Itália e nunca mais voltou a falar com esses produtores.

Essa pequena história ilustra bem o que tem Stromboli de belo, de irredutível, mas também de árido. Um filme enorme.

Folhapress - INÁCIO ARAUJO

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