11 DE ABRIL DE 2018
PEDRO GONZAGA
Uma fábula cartesiana
Depois de quase dois milênios sem operar, Deus ressurge sonolento entre as nuvens e, num vistaço, decide intervir em nossa escuridão. A contragosto, aceita que nem o amor, nem a caridade, nem o sacrifício pregados pelo filho frutificaram, e, tomado por um quê de modéstia, conforma-se agora a uma branda intervenção. Lembra do otimista Descartes, e considera que fazê-lo voltar traria algum conforto racional à humanidade, sem mencionar o exemplo da saudável dúvida que habitava os pensamentos do filósofo francês.
Mas o novo Descartes é incapaz de se concentrar apenas nos temas excelsos - como passa a todos ora viventes - e logo se vê envolvido, vez após vez, em polêmicas digitais, desnecessárias e obtusas, derrotado em sua paciência, ferido em seu método, vacilante em seus princípios.
Ao começo ingênuo, faz questão de guiar seus contatos digitais para a lógica, para a matemática, para os questionamentos metafísicos.
Não leva três dias para descobrir a função ocultar.
Na quinta-feira, desfaz metade das amizades - não sem compartilhar páginas de fontes fidedignas para lhes retirar da ignorância -; na sexta, anuncia a sua retirada oficial das redes. Frustrado consigo mesmo, volta dois dias depois, numa triste forma de páscoa que o faz xingar sem perdão qualquer publicação dissidente. Tentando recuperar a calma, publica dois vídeos de gatinhos e troca a foto do perfil, a fim de valorizar o fino cavanhaque (muito elogiado num aplicativo de encontros). Ao primeiro gracejo nos comentários, parte para o ataque em caixa alta, livre afinal dos dilemas existenciais que o levaram a intuir que duvidar era ser. Que erro. O ser não duvida, o ser só importa se for um ser sobre os outros.
Lacro, portanto sou. Mito, portanto sou.
Algumas horas mais tarde, restam-lhe não mais do que 12 seguidores. Deixa passar a coincidência numérica, envolto está numa nova forma de prazer: a discussão política. Nunca mais geometrias e álgebras, nunca mais a maldita moderação. Abestalhado, começa a replicar as páginas do partido, fonte da única e suprema sabedoria.
E a madrugada avança.
Quanto a Deus, dizem que costuma dormir antes do final.
PEDRO GONZAGA
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