domingo, 8 de abril de 2018


Mia Couto
Tinha 14 anos quando li "Platero e Eu, uma Elegia Andaluz", de Juan Ramón Jiménez. O meu pai, que era poeta, deu-mo a ler sabendo da minha paixão pelos bichos. Na altura, desconhecia que um poema podia caminhar pelos atalhos da prosa. Essa foi a primeira surpresa: havia naquela pequena "novela" (descobri depois que aquele livrinho não cabia em nenhuma categoria) mais poesia do que em muitos dos versos que até então me tinham chegado.
Mais importante ainda: não havia naquele texto a voz de um adulto que se debruçava, com paternal condescendência, sobre a suposta menoridade das crianças. Noutras palavras, o que me encantou, de imediato —e só mais tarde entendi a razão desse fascínio— foi que o seu autor não escrevia para crianças. Ele era uma criança enquanto escrevia.




livro 'Platero e Eu'
O livro de Juan Ramón Jiménez na edição bilíngue da editora brasileira Martins Fontes - Adriano Vizoni/Folhapress
poesia entregava-lhe um modo de guardar e refabricar a infância, com as suas infindáveis descobertas e os seus infinitos encantamentos. Um estranho e distante Juan Jiménez dava-me o consolo de saber que a infância pode ser um tempo infinito, um tesouro que pode ser guardado para além da adolescência que eu atabalhoadamente vivia.
Digamos que eu não li "Platero e Eu". Eu fui lido pelo livro. Reconciliava-me com as vezes que pensaram insultar-me chamando-me de burro. Vezes sem conta voltei a folhear aquelas páginas para rever esse burrinho "todo feito de algodão, parecendo uma criatura sem ossos". Com seus olhos doces, aquela doce criatura emigrava do papel para passear nos meus sonhos e eu ia com ele aprender o que estava para além do programa escolar: aprender a amar, a sonhar, a ser outros.
Afinal, não era de um bicho que Jiménez falava. O escritor andaluz falava da relação que podemos construir com seres que parecem tão diversos e distantes.
Talvez nenhum outro livro me tenha ensinado tanto a romper com a ideia da minha própria identidade, definitiva e fechada. Nenhum outro livro me ensinou o prazer de não ter idade, nem obedecer àquilo que chamam de realidade.




mia couto
O escritor moçambicano Mia Couto, em passagem pelo Brasil em 2013 - Greg Salibian - 24.ago.2013/Folhapress
No prefácio de um livro "infantil" que se publicou no Brasil, eu escrevi o seguinte: "Não sei se alguém pode fazer livros para crianças. Na verdade, ninguém se apresenta como fazedor de livros para adultos". Quando escrevi isto não sabia do que pensava Juan Ramón Jiménez sobre a chamada escrita para crianças. Só agora descobri a seguinte frase que lhe pertence: "Eu nunca escrevi nem escreverei nada para crianças porque acho que a criança pode ler os livros que o homem lê...".
"Platero e Eu" não é uma história infantil sobre um burro. É uma história sobre a infância como um tempo cheio de tempos, de histórias e de mistérios. Talvez seja essa a razão pela qual, um certo dia, o meu pai me sugeriu a leitura daquele livro. Na altura, eu lia Salgari, Tom Sawyer, Lewis Carroll, Júlio Verne. Parecia confirmar-se em mim o preceito comum de que as crianças precisam ser animadas pelo sentido de aventura e mistério para se prenderem à leitura.
Mas ali estava um adolescente completamente fascinado pela sensibilidade e delicadeza de um texto poético. Ali estava um homem —e era sempre o meu pai— que conversava com um animal como fazem os médiuns da minha terra. Afinal, aquele burrinho feito de algodão estava dentro de mim. Sem ossos para não pesar nos sonhos.
A leitura de "Platero" nunca terminou. Chegava ao fim do livro tão receoso do fim como um rio frente ao estuário. Nesses meandros se eterniza ainda hoje a minha infância.

Mia Couto, 62, escritor moçambicano vencedor do Prêmio Camões, é autor de "Terra Sonâmbula" e "O Último Voo do Flamingo" (Companhia das Letras). Lança este mês o romance "O Bebedor de Horizontes" pela mesma editora.

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