sábado, 7 de abril de 2018



07 DE ABRIL DE 2018
J.J. CAMARGO

O CARÁTER E A REJEIÇÃO

Os leigos tendem a escolher hospitais pela publicidade que, para ser eficiente, tem de alcançar o sonho da imortalidade popular mais fantasioso. Lembro de uma senhora cujo pai, um grande empresário, descobriu-se com câncer, e as notícias médicas não eram nada animadoras. O apelo telefônico, e havia desespero na voz, era para saber se eu tinha algum médico conhecido no Hospital Sírio- Libanês porque, depois de uma reunião da família, os filhos haviam decidido que, sendo rico como era, o patriarca merecia um tratamento que alongasse ao máximo a sua vida gloriosa, uma coisa assim do tipo "José Alencar, para o papai!".

A história do bonachão, então vice-presidente da República, com inúmeras cirurgias e rápido retorno à vida normal, animara o imaginário daquela família de filhos amorosos e ingênuos. Abstraídos os casos de delírio infantil, pode-se dizer que existem, sim, parâmetros muito mais objetivos para selecionar instituições pela qualidade técnica do seu atendimento. 

Num cenário bem realista, provavelmente nada credencia mais um hospital do que a disponibilidade de múltiplos transplantes. E por uma razão muito simples: a qualificação técnica indispensável para se implantar um programa de transplante, além de extraordinariamente exigente, ainda tem a característica ímpar de não ser exclusiva. Ou seja, os avanços tecnológicos estarão disponíveis para todos os pacientes atuais e futuros daquele serviço, não apenas para a população transplantada.

Dirigindo o Centro de Transplantes da Santa Casa, erigido pelo esforço generoso de um grupo de empresários diferenciados pela insuperável noção de responsabilidade social, tenho acompanhado o imenso esforço administrativo para mantê-lo atuando em alto nível, preservando a dimensão dos sonhos embalados durante a sua concepção. E, então, algumas aberrações se tornaram aparentes: mais de 40% dos brasileiros têm plano de saúde privada e 95% de todos os transplantes são bancados pelo SUS.

E por que esse absurdo? Porque a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANSS), sabe-se lá por quais critérios, considera obrigatório que os planos de saúde paguem apenas os transplantes de rim, córnea e medula. Ou seja, se você pagou o seu plano de saúde durante a vida toda e não teve chance de escolher qual órgão pifaria lá pelas tantas, reze para que a necessidade não inclua transplante de coração, fígado, pâncreas ou pulmão. Porque, nesses casos, o seu transplante onerará o já combalido sistema público de saúde. 

Curiosamente, os gestores da saúde enchem a boca para falar do maior programa de transplante em saúde pública do mundo, ignorando que, em nenhum lugar do planeta, o Estado assume responsabilidades contratadas pela iniciativa privada. O modelo vigente aqui, além de restringir o número de centros interessados, é uma enorme injustiça com o paciente que pagou o seu plano com regularidade, com os raros hospitais que ainda investem em alta complexidade e são sacrificados pela remuneração insuficiente do SUS, e com o próprio SUS que, se não fosse essa insanidade da ANSS, teria mais recursos para tratar dos pacientes que dependem exclusivamente dele.

Agredidos pelo absurdo, alguns doentes pressionam judicialmente seus convênios a assumir o custeio do transplante, mas para isso tem que haver a iniciativa do paciente, o que é sempre desgastante. Aliás, nessa circunstância, há uma impressionante diversidade de atitudes. Dois exemplos opostos: um homem que batalhou no limite das suas forças para ser atendido e, arfante de enfisema e orgulho, trouxe a liminar definitiva. 

E uma profissional liberal que, enquanto com falta de ar, prometeu que, bem relacionada como era, certamente conseguiria que o plano assumisse o encargo e que, quando chamada para o transplante, anunciou que desistira do preito porque se dera conta de que "ela era uma brasileira". Ninguém questionou o que isso significava, mas não pareceu uma coisa boa. Sorte dela que caráter não interfere no índice de rejeição do órgão.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO

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