28 DE ABRIL DE 2018
PAULO GLEICH
ADEUS A UMA MESTRA
Escrevo horas após ir ao velório de uma pessoa especial, daquelas que são difíceis de qualificar. Não era uma amiga, embora um laço de amizade também nos unisse. Não era uma professora, embora eu tenha aprendido muito sobre meu ofício no convívio com ela. Não era também apenas uma colega, embora compartilhássemos da mesma profissão. Merece um título que outorgamos a poucas pessoas: era uma mestra, certeza que tive no momento de dizer adeus.
Mestres são pessoas especiais em muitos sentidos. São figuras que carregam em si uma força singular, que têm a capacidade de despertar em nós mesmos uma força às vezes adormecida. São pessoas a cuja presença não somos indiferentes, mesmo que o afeto que nos despertam oscile, por vezes, entre a admiração e o rechaço. Isso talvez porque essa mesma força que ajuda a nos por em movimento às vezes também nos inibe e atropela.
O desenvolvimento humano é impossível sem mestres. Os primeiros são nossos pais, por quem desenvolvemos essa admiração temerosa, por mera necessidade de sobrevivência. Nos sentimos pequenos diante deles, lhes atribuímos capacidades sobre-humanas, mas é graças a eles que crescemos. Aos poucos, atribuímos a outros essa função: professores que marcam a trajetória escolar, uma tia com quem desenvolvemos uma relação especial, um amigo por quem nutrimos admiração.
Em algum momento, chega a inevitável decepção: os mestres, apesar das qualidades que carregam, revelam sua falibilidade. Seja um defeito, seja uma falha, subitamente algo rompe a imagem de onipotência que até então lhes outorgávamos. A adolescência é o momento paradigmático dessa queda: saltam aos olhos os defeitos (ou seja, a humanidade) dos pais, as falhas passam a ser tudo o que neles vemos - e fazemos questão de expor. Não à toa, é na adolescência que se buscam novos mestres, pois os antigos caíram desse lugar.
Tem quem jamais atravesse esse momento e siga cultuando para sempre a imagem forjada na infância, ao preço de jamais poder se confrontar com a dimensão humana dos pais - e, por tabela, com a sua própria. Vivem presos a exigências de perfeição, e tudo que fica aquém disso é fracasso. Ao não poder humanizar os mestres, sofrem com sua própria pequenez diante de ideais inalcançáveis. O mestre passa a ser um tirano, mesmo que seja um tirano interno.
Mas há também quem fique capturado no momento adolescente da queda do mestre, não superando sua imperfeição. Atentos às mínimas falhas, seguem gritando aos quatro ventos como são mestres fajutos, por não encarnarem todas as qualidades que lhes são atribuídas. Cria-se um ciclo permanente de busca de um novo mestre, que cedo ou tarde decepcionará, levando à procura de outro. O foco nas falhas acaba deixando cego às qualidades e potencialidades - as do mestre, mas também às próprias.
É somente num terceiro movimento, após a adoração e a decepção, que é possível estabelecer uma relação mais saudável - e proveitosa - com os mestres: é quando sua imperfeição não mais invalida as qualidades que têm a transmitir. Reconhece-se que sua força criativa também pode ser destrutiva, que seu destemor também oculta, como em todos nós, temores. Por isso, todo bom encontro com um mestre pressupõe um adeus: à idealização que, em um primeiro momento, fizemos dele.
À mestra Martha Brizio, gratidão por compartilhar com tantos de nós sua grande força - e sua humanidade.
PAULO GLEICH
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