sábado, 5 de abril de 2014


<>06 de abril de 2014 | N° 17755
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

Um tempo sem kiwi e sem heróis

Sou de um tempo sem kiwi. Não havia kiwi, não havia sushi, o pão era semolina de meio quilo, tudo era mais difícil naquela época. Também não havia internet, logo não havia e-mail ou Facebook, não havia nem celular e nós nem sequer tínhamos telefone fixo em casa. Como nos comunicávamos? Não sei. Como arranjávamos amigos e namoradas? Não faço a mais tísica ideia.

Que mundo estranho era aquele sem kiwi.

Naquele tempo tão longe, de mim distante, os guris não sonhavam em ganhar iPad de Natal. Não, não, nossos anseios, basicamente, se resumiam a três presentes:

1 Uma bola de couro número 5, coisa cara.

2 Uma bicicleta, coisa caríssima.

3 Um autorama, coisa para nababo.

4 Uma vez ganhei uma bola de couro número 5, costurada a mão por algum presidiário, gomos pretos e brancos, uma lindeza, o único tipo de bola que deveria ser utilizado em quaisquer campeonatos do mundo para todo o sempre, amém.

Lembro-me da pena que senti em chutá-la pela primeira vez, mas, bem, eu tinha de chutá-la, para isso ela existia, e a chutei com gosto, todos nós da turma a chutamos, jogos épicos foram disputados com aquela relíquia, marquei gols com ela, sim, os marquei, até que ela foi gastando com o tempo e com o uso, e logo a tinta branca e preta desbotou, e em seu lugar restou o cinza sujo do couro, e um dia a costura de um gomo se abriu como uma fenda na carne, e olhei para a minha linda bola de couro número 5 com alguma tristeza, sabia que ela estava chegando ao fim, mas sabia, também, que tudo na vida nasce, alcança o auge, passa pela decadência e morre, e via que a morte da minha bola se iniciava, e logo os gomos foram se soltando, um a um, um por jogo, e em pouco tempo ela parecia uma velha casa com a tinta descascada e as janelas arrombadas, uma casa abandonada e melancólica, e logo ela nem rolava mais direito, e um dia foi substituída por uma bola novinha que algum outro guri ganhou de aniversário, e foi posta de lado, e murchou, esquecida, como murcham até os grandes sentimentos, e morreu como morrem até os amores imortais.

Foi triste perder aquela bola. Mas valeu a pena, porque você só perde o que você um dia teve, e eu a tive.

5 Autorama, não. Autorama nunca tive. Autorama era areia demais para o caminhãozinho financeiro da família. Mas bicicleta um dia ganhei. Recordo minúcias daquele feliz Natal. Foi um esforço conjunto de mãe, vô, madrinha e vó. Um mutirão. E lá estava ela, uma Caloi azul escura, de trava torpedo, aro grosso, pneus pretos da espessura do meu braço. Que emoção.

Era uma bicicleta sem marchas. Ninguém ganhava bicicleta com marcha num tempo sem kiwi. Depois é que surgiu a Caloi 10. Dez marchas, um luxo. Diziam que com uma bicicleta de 10 marchas você podia subir a lomba da Lucas assobiando, mas acho que era lenda.

De qualquer forma, percorri toda a cidade com minha Caloizinha. Saíamos em cardumes, pedalando pelos bordos das avenidas. Fomos até a longínqua Zona Sul, região por nós desconhecida, hábitat de gente esquisita, que convivia com o rio. Fomos à inóspita Alvorada. Nos aventuramos pela Freeway. Pedalamos, pedalamos, e nem sabíamos que éramos heróis.

Como o tempo é injusto com os homens. Fosse hoje, seríamos incensados na cidade. Seríamos reportagem de jornal. Seríamos personagens de discurso na Câmara. Sim, porque, agora, neste tempo de kiwis, existe a crença de que andar de bicicleta muda o mundo, de que andar de bicicleta é fazer a Revolução.

Quem poderia imaginar? Nenhuma daquelas duplas famosas, Marx & Engels, Lenin & Trotski, Fidel & Che, nenhum deles imaginaria que o capitalismo seria abalado a pedaladas.

Mais amor, menos motor.

Tem um lugar que aplica essa máxima. É a Coreia do Norte. Na Coreia do Norte existem só 25 mil carros para 25 milhões de habitantes. E lá mulher não pode dirigir. Você vê a foto de uma avenida na Coreia do Norte e suspira de felicidade. Todo aquele asfalto vazio, as pessoas se deslocando de bicicleta ou a pé mesmo. Pena que na Coreia do Norte todo mundo tenha que usar o cabelo do rapaz aquele, o ditador, filho de ditador. Se Hitler tivesse obrigado os alemães a usar seu bigodinho, seria derrubado em seis meses e não teria ocorrido a II Guerra Mundial, e o Ocidente seria diferente.

Mas enquanto não nos transformamos numa ecologicamente correta Coreia do Norte, fico pensando nas soluções para o trânsito de Porto Alegre. A bicicleta seria parte delas, decerto que sim. O problema é que, mesmo com 10 marchas, bicicleta não sobe a lomba da Lucas. Moto sobe.

Então, me quedo a cogitar: ninguém se importa com as motos. Motoqueiros morrem aos quilos todos os meses, e ninguém protesta, ninguém fecha rua, ninguém cerra o punho de indignação por eles. Ninguém clama por “motovias”, tampouco, e ninguém usa nariz de palhaço na Câmara para defender motoqueiro. Ninguém liga se o motoqueiro é humilhado, amassado, atropelado, e por quê? Porque, para eles, motoqueiro é entregador de pizza. É pobre. E é o que digo, sempre digo: brasileiro não gosta de pobre.


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