<>06
de abril de 2014 | N° 17755
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
Um tempo sem kiwi e sem
heróis
Sou
de um tempo sem kiwi. Não havia kiwi, não havia sushi, o pão era semolina de
meio quilo, tudo era mais difícil naquela época. Também não havia internet,
logo não havia e-mail ou Facebook, não havia nem celular e nós nem sequer
tínhamos telefone fixo em casa. Como nos comunicávamos? Não sei. Como
arranjávamos amigos e namoradas? Não faço a mais tísica ideia.
Que
mundo estranho era aquele sem kiwi.
Naquele
tempo tão longe, de mim distante, os guris não sonhavam em ganhar iPad de
Natal. Não, não, nossos anseios, basicamente, se resumiam a três presentes:
1
Uma bola de couro número 5, coisa cara.
2
Uma bicicleta, coisa caríssima.
3 Um
autorama, coisa para nababo.
4
Uma vez ganhei uma bola de couro número 5, costurada a mão por algum
presidiário, gomos pretos e brancos, uma lindeza, o único tipo de bola que
deveria ser utilizado em quaisquer campeonatos do mundo para todo o sempre,
amém.
Lembro-me
da pena que senti em chutá-la pela primeira vez, mas, bem, eu tinha de
chutá-la, para isso ela existia, e a chutei com gosto, todos nós da turma a
chutamos, jogos épicos foram disputados com aquela relíquia, marquei gols com
ela, sim, os marquei, até que ela foi gastando com o tempo e com o uso, e logo
a tinta branca e preta desbotou, e em seu lugar restou o cinza sujo do couro, e
um dia a costura de um gomo se abriu como uma fenda na carne, e olhei para a
minha linda bola de couro número 5 com alguma tristeza, sabia que ela estava
chegando ao fim, mas sabia, também, que tudo na vida nasce, alcança o auge,
passa pela decadência e morre, e via que a morte da minha bola se iniciava, e
logo os gomos foram se soltando, um a um, um por jogo, e em pouco tempo ela
parecia uma velha casa com a tinta descascada e as janelas arrombadas, uma casa
abandonada e melancólica, e logo ela nem rolava mais direito, e um dia foi
substituída por uma bola novinha que algum outro guri ganhou de aniversário, e
foi posta de lado, e murchou, esquecida, como murcham até os grandes
sentimentos, e morreu como morrem até os amores imortais.
Foi
triste perder aquela bola. Mas valeu a pena, porque você só perde o que você um
dia teve, e eu a tive.
5
Autorama, não. Autorama nunca tive. Autorama era areia demais para o
caminhãozinho financeiro da família. Mas bicicleta um dia ganhei. Recordo
minúcias daquele feliz Natal. Foi um esforço conjunto de mãe, vô, madrinha e
vó. Um mutirão. E lá estava ela, uma Caloi azul escura, de trava torpedo, aro
grosso, pneus pretos da espessura do meu braço. Que emoção.
Era
uma bicicleta sem marchas. Ninguém ganhava bicicleta com marcha num tempo sem
kiwi. Depois é que surgiu a Caloi 10. Dez marchas, um luxo. Diziam que com uma
bicicleta de 10 marchas você podia subir a lomba da Lucas assobiando, mas acho
que era lenda.
De
qualquer forma, percorri toda a cidade com minha Caloizinha. Saíamos em
cardumes, pedalando pelos bordos das avenidas. Fomos até a longínqua Zona Sul,
região por nós desconhecida, hábitat de gente esquisita, que convivia com o
rio. Fomos à inóspita Alvorada. Nos aventuramos pela Freeway. Pedalamos,
pedalamos, e nem sabíamos que éramos heróis.
Como
o tempo é injusto com os homens. Fosse hoje, seríamos incensados na cidade. Seríamos
reportagem de jornal. Seríamos personagens de discurso na Câmara. Sim, porque,
agora, neste tempo de kiwis, existe a crença de que andar de bicicleta muda o
mundo, de que andar de bicicleta é fazer a Revolução.
Quem
poderia imaginar? Nenhuma daquelas duplas famosas, Marx & Engels, Lenin
& Trotski, Fidel & Che, nenhum deles imaginaria que o capitalismo seria
abalado a pedaladas.
Mais
amor, menos motor.
Tem
um lugar que aplica essa máxima. É a Coreia do Norte. Na Coreia do Norte
existem só 25 mil carros para 25 milhões de habitantes. E lá mulher não pode
dirigir. Você vê a foto de uma avenida na Coreia do Norte e suspira de
felicidade. Todo aquele asfalto vazio, as pessoas se deslocando de bicicleta ou
a pé mesmo. Pena que na Coreia do Norte todo mundo tenha que usar o cabelo do
rapaz aquele, o ditador, filho de ditador. Se Hitler tivesse obrigado os
alemães a usar seu bigodinho, seria derrubado em seis meses e não teria
ocorrido a II Guerra Mundial, e o Ocidente seria diferente.
Mas
enquanto não nos transformamos numa ecologicamente correta Coreia do Norte,
fico pensando nas soluções para o trânsito de Porto Alegre. A bicicleta seria
parte delas, decerto que sim. O problema é que, mesmo com 10 marchas, bicicleta
não sobe a lomba da Lucas. Moto sobe.
Então,
me quedo a cogitar: ninguém se importa com as motos. Motoqueiros morrem aos
quilos todos os meses, e ninguém protesta, ninguém fecha rua, ninguém cerra o
punho de indignação por eles. Ninguém clama por “motovias”, tampouco, e ninguém
usa nariz de palhaço na Câmara para defender motoqueiro. Ninguém liga se o
motoqueiro é humilhado, amassado, atropelado, e por quê? Porque, para eles,
motoqueiro é entregador de pizza. É pobre. E é o que digo, sempre digo:
brasileiro não gosta de pobre.
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