sábado, 2 de janeiro de 2021


02 DE JANEIRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

AMBROSIA

Há algo divino no que nos alimenta o espírito e a esperança. Por que nos animamos para pensar e viver a vida, criar, semear, construir, renovar esperanças? Em meio à pavorosa peste, e face à morbidez do Monstro que ora brande o gadanho da Morte, ainda assim olhamos para outros olhos e, neles e com eles, olhamos para nós mesmos, e para a mirada dos Grandes Índios e Índias que juntaram as pedras de nossa morada, e vemos, nesses olhares, a força que nos anima e inspira, e avançamos. O horror e as trevas não nos arrasam, só dão contraste à luz, e renascemos, falamos, realizamos. És ambrosia, a parte divina de um mundo que pode ser iluminado de destinos que podem ser sagrados.

Brotós, em grego, é o homem mortal, ainda vivo, oposto ao morto, nekrós, e aos deuses, imortais - athánatoi. A(m)brotós é imortal, como deuses e deusas gregos, que quase morreram, mas foram recolhidos por poetas e artistas e assim reanimaram o mundo, desde a Renascença. Nos veros mitos, entes sagrados deleitam-nos com fantasias repletas de engenho e símbolos, que alimentam a sensibilidade e o pensar. As deidades do Olimpo, ao saciarem-se com néctar e ambrosia, erguem braços níveos e compartilham o que lhes confere a imortalidade. São como os poemas e as músicas, o amor e os pensamentos, as belas imagens e os saberes lúcidos, que recebemos de ancestrais e convivas generosos, e que nos nutrem para que possamos sonhar, sendo mortais, com a centelha imortal que há em cada gesto puro, no singelo e no grandioso, no pão e no vinho.

A imortalidade divina é, nessa trama, demasiado humana. Mesmo céticos ou materialistas, podemos nos olhar e renascer em amor, fé e esperança, sem embarcar nas balelas das religiões-empresas, mas assegurados no que importa, a dignidade, a liberdade e as verdades da vida. E não são também divinos os genes, que, em turbilhão, nos compelem a pensar e desejar, e estender as mãos, com fome e empatia? A parte imortal contrasta com a finitude, e a parte mortal torna humano o que há de imperecível. O fio de Ariadne é um pensamento que revela a natureza histórica dos fenômenos do mundo e da cultura, incluindo-se esses seres imaginados há muito, e referidos com nomes de deuses e deusas. São parte de um cosmos que criamos e queremos perenizar, com o encanto de uma palavra divina.

Se há algo divino e humano nas artes e na ambrosia que compartilhamos, deve haver, por outro lado, algo medonho na água que bebem os zumbis e muares de Trintaporcentolândia, com seu furor suicida, e com o credo letal que querem nos impor. Mas o pacto eleitoral que deu cetro ao pastor daquele rebanho não incluiu poder de vida e morte sobre todos. Eis porque deve-se recusar esse cálice nada sagrado, que impõe o sacrifício imerecido de milhares de vidas. E que os bananas do pseudo-Olimpo larguem do cafezinho morno e do uísque torpe e cessem de prevaricar; já chegou a hora de provar-se a mortalidade de quem se supõe divino, sem nada saber de néctar ou de ambrosia.

Mas nós sabemos. E seguiremos com essa palavra perfumada, fármaco bom, dom de Dioniso, em festa, ambrosia.

FRANCISCO MARSHALL

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