domingo, 31 de janeiro de 2021


30 DE JANEIRO DE 2021
LYA LUFT

Significados 

Numa simpática entrevista, alguém me pergunta se acho que as pessoas buscam significados para as loucuras, confusões e desgraças desta pandemia - na qual a maioria nem consegue mais ouvir falar, embora sofra na carne ou na alma as suas consequências.

Fingimos até que ela nem existe, que é invenção de sistemas e lideranças corruptas ou ávidas de nos colonizar, enfim, tudo o que permite a perigosa mistura de desinformação, má vontade, arrogância e medo.

Não sei se normalmente buscamos significados. "O sentido da vida" parece quase antiquado e esdrúxulo na correria da vida moderna, quando não temos mais tempo, vontade ou lugar para contemplar um pôr do sol, escutar o vento nas árvores, olhar crianças brincando, ou responder com calma e amor quando uma delas vem contar, como certa vez uma de minhas netas, que ela e o pai acharam no jardim um passarinho morto, "e a gente plantou ele na terra". E certamente ela e eu acreditamos piamente que dali nasceria uma árvore de passarinhos, que iriam voar pelos céus muito acima da nossa banalidade.

A maioria de nós não busca significados, porque nem tempo para refletir lhe resta: ocupamos todos os espaços com atividades, está na moda, até crianças, quando em situação normal, parecem pequenos executivos com agenda cheia ou quase cheia. E possivelmente nos atordoamos um pouco, pois alguém me disse "parar pra pensar? nem pensar! se paro pra pensar, eu desmorono".

A vida é outra, é agora, as relações são outras, embora os sentimentos não tenham mudado: todos queremos presença e atenção, afeto, escuta, colo ou ombro, alegria, prazer. Mas falta, intensamente, imensamente, o convívio normal com família e amizades especiais, a pequena liberdade de almoçar fora com uma amiga, de levar netos e netas para a casinha da serra, de trocar ideias, sérias ou divertidas, com filho, filha, noras e genro, e, enfim, ser uma pessoa normal, dentro do que julgo normal: menos louco, menos oprimido, menos assustado do que agora, menos doutrinado e tantas vezes mal doutrinado.

Então vamos nos divertir, porque aprender é muito chato, somos maus alunos, queremos nossa vida, nossos limites (largos, por favor), nossa opinião, estamos exaustos de pandemia e cuidados, mil recomendações, deprimente tudo isso.

Como, onde, então, buscar algum significado para as centenas e centenas de milhares de mortos, de sequelados, de enlutados, com esse vírus insidioso, traiçoeiro, maligno e tantas vezes mortal? Estamos cansados. Estamos deprimidos. Ninguém nos diz por quanto tempo teríamos de nos cuidar, de nos isolar, de viver uma vida mais sossegada, mais contemplativa, mesmo que o dia todo grudados nos notebooks e celulares e computadores com as imagens consoladoras de pessoas queridas.

Um ou outro, sim, refaz seu senso de vida, de relacionamentos, torna-se mais amoroso, mais aberto, mais generoso, e mais coerente consigo mesmo. Mas para a maioria é tudo insuportável, então vamos infringir. Doloroso engano, achar que pular por cima dos limites sensatos é encontrar a fruta mais gostosa e a diversão maior. Não é esse o significado do que nos acontece agora.

LYA LUFT

30 DE JANEIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

A montanha que escalamos 

"Onde podemos encontrar luz nesta sombra sem fim?". É um verso e ao mesmo tempo uma pergunta que faz parte do poema que Amanda Gorman leu durante a posse do presidente americano Joe Biden, e que foi respondida por ela própria, ao se apresentar diante do planeta com seu faiscante casaco amarelo e seu sorriso luminoso. Durante os seis minutos que durou sua performance, ela esbanjou elegância, consciência, juventude, esperança, suavidade - isso tudo embalado em poesia.

Amanda Gorman é um farol.

Boa parte dos americanos vibrou com o fim do governo Trump, e boa parte do mundo também, pois o que acontece nos Estados Unidos reflete em todas as nações. E o que refletiu foi o retorno da luz. Biden não é um super-herói e certamente cometerá erros, mas é um democrata preocupado com o meio ambiente e com os direitos humanos, e escolheu como vice uma mulher negra com ascendência indiana e jamaicana. Simbolismos que indicam que "para colocar nosso futuro em primeiro lugar, devemos antes colocar nossas diferenças de lado", outro verso do poema de Amanda, ela própria descendente de escravos e criada por mãe solteira.

É muito difícil evoluir sem que se avalie as consequências de decisões burocráticas na vida pessoal de cada um. O poder sempre esteve atrelado às chaves do cofre, a tanques estacionados nos quarteis, a botões que disparam mísseis, a falsos apertos de mãos entre interesseiros - o povo é apenas um detalhe, como muitos já disseram. Não me iludo, a política seguirá sendo um conluio de bastidor, que é um lugar escuro, mas recupero minha fé quando vejo governantes demonstrando empatia com o que acontece nas ruas e nos lares, que é onde os "detalhes" fazem a roda girar e o dia amanhecer.

Amanda, por breves instantes, foi uma porta-voz. Não só do novo governo americano, mas de um novo futuro que está tentando abrir nossas cabeças: até quando consideraremos arte e diversidade como assuntos menores? Por que a religião é tão soberana, enquanto a natureza (sagrada como qualquer Deus) é valorizada apenas como cartão-postal? Colocamos preço em tudo, julgamos mal quem não se parece conosco, competimos por pódios que não existem: até quando seremos tão vulgares?

É uma montanha alta, a da sabedoria. E governos arrogantes não abastecem a população com equipamentos para escalá-la. Educação, oportunidades e respeito são nossas botas de alpinismo, nossos apetrechos para vencer cada etapa. Amanda Gorman escolheu bem o título para seu poema, The Hill We Climb. É bonito ver jovens com ideais, traduzindo seus sonhos em versos e, com eles, retirando as pedras do caminho. O mundo não quer mais saber de sonhadores, eu sei, mas o mundo está errado.

MARTHA MEDEIROS

30 DE JANEIRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A FRESTA SEXUAL 

Sei que o título deve ter assustado leitores e leitores que, como eu, possuem certa aversão ao vulgar e ao palavrão. A etiqueta que nomeia a crônica transmite excesso erótico. O que se segue passa por sexo, porém, evitarei colorir a bochecha dos pudicos com o rubor. Avancem, pois, tradicionalistas e envergonhados, arranharemos o sexto mandamento (o da castidade) sem frequentar lupanares.

Trarei à lembrança a narrativa de um grande amigo. Entre vinhos e confidências, ele abriu o verbo sobre seu casamento já celebradas as bodas de prata. Augusto era feliz com a esposa. Tiveram dois filhos que já estavam fora de casa. Um casal harmônico e de hábitos tranquilos. Rusgas leves, nenhuma tragédia no histórico do quarto de século compartilhado e, para coroar a fluida felicidade, duas sogras com vida própria.

Após a primeira garrafa, Augusto dizia que, como todos nós, cinquentões, o contato físico do casal tinha sido intenso no primeiro ano, diminuído um pouco depois e, finalmente, entrado em uma prática que estava abaixo da Bruna Surfistinha e acima da Madre Teresa de Calcutá. Beijavam-se, trocavam carinhos, dormiam enlevados em uma conchinha (pelo menos no começo da noite) e tinham um prazer na intimidade e no carinho. O sexo, em si, nunca tinha desaparecido, apenas deixara de ser ator principal. Virara um contrarregra cioso e rápido que entra em cena, deixa um objeto e desaparece nas coxias, ou nas coxas em trocadilho infame de tiozão.

Mais duas taças e a história seguiu. Lícia tinha cedido a um impulso e comprara, pela internet, roupas sexy de garota pin-up. No sábado, de início constrangida, depois entusiasmada, vestiu a fantasia e chamou Augusto. O marido adorou o upgrade de fantasia. O encontro durou 50% a mais do que o habitual. A ideia fora boa. Tinha sido criada uma fresta imaginativa. Os olhares do casal incluíam uma certa malícia. As cinzas foram sopradas e uma chama nova se acendeu.

No sábado à tarde, momento oficioso de cumprir deveres conjugais, ambos se surpreenderam. Ele viera de motoqueiro completo; ela, com uma curtíssima saia plissada, blusa branca justa e meia três quartos. Os diálogos ficaram mais elaborados e o sexo foi o melhor que já tinham experimentado, superando o da lua de mel.

A fresta virou porta pivotante. Em breve, surgiram algemas, roupas íntimas com detalhes interessantes, acessórios, aparelhos, coisas que ligavam na tomada, cremes e todo arsenal possível comprado em discretos sites com entrega camuflada. Quem visse as caixas nunca imaginaria o conteúdo. A alegria de ambos era pública. Sexo bom com quem se ama é uma imersão em banheira de colágeno. Era uma primavera erótica, e a chama virou labareda. Augusto confessou que chegava a ir almoçar em casa quando sabia de uma nova caixa na portaria. Qual seria o limite?

Os meses seguintes alargaram todos os horizontes. A discreta fresta da primeira roupinha virou uma prática que consumia mais e mais energia. O final de semana foi absorvido inteiramente. As noites da semana eram atravessadas em experiências e começaram a perder o horário de despertar. Eram felizes, porém, não havia espaço para almoços familiares de domingo ou reuniões logo ao albor da aurora. Transformaram-se em um sátiro e uma ninfa correndo o bosque e celebrando a fertilidade pagã. E, freudianamente, como civilização é repressão e tabu, "incivilizaram-se" de forma generosa. O carro do prazer lançava-se sobre um abismo infindável. Surgiu intervenção familiar.

Meu amigo narrou que os filhos falaram discretamente. Depois foram as sogras. O mundo tolera, com algum azedume, a erotização na juventude. Depois, mesmo nas sociedades mais abertas, espera-se um apagar lento da chama e a ascensão de jantares calmos em casa. O curso natural das coisas fora interrompido pela imaginação sexual de Augusto e Lívia. Era chegado o momento de interromper aquela kama sútrica.

As pressões aumentaram. A felicidade de poucos tornava insuportável a aridez de tantos. Aquele riacho de prazer no deserto da sensaboria virou rio subversivo. O beijo que eles trocavam ao portão causava comentários. Houve detração por toda a rua. Era necessário que abandonassem o erotismo e voltassem ao beijo casto, leve e de poucos segundos. Venceram os portões insípidos de ósculos na testa. Triunfou a castidade. Os dois amantes perceberam que o mundo não poderia admitir, depois dos 50, aquela happy hour permanente em Sodoma e Gomorra.

Augusto suspirou com um copo na mão ao falar de como se foram roupas e objetos. A cenografia foi desfeita e destruída. Voltaram a usar a mortalha do amor: o pijama. Lívia retornou à camiseta larga que ganhara em uma eleição no início do governo FHC. Augusto recuperou o calção aerado por furos caprichosos. Casal não uivaria mais para a Lua como bacantes ensandecidas. A porta se fechou e até a antiga fresta foi calafetada. Como não havia mais sexo, entregaram-se ao perfeito substituto do prazer: reformar a casa. Em casa que escasseia o orgasmo, abunda a massa corrida no reboco. É uma lei invisível e pétrea. O casal foi bem-aceito novamente, e tudo estava bonito na casa e no jardim. Ao partir pela manhã, ele dava um beijo na testa da esposa. Ao atingir a única zona não erógena do corpo humano, os anjos celebravam e a vizinhança apontava: quase 30 anos juntos e ainda se amam...

É preciso ter muita esperança, mas sem acessórios. Toda fresta é perigosa para a civilização.

LEANDRO KARNAL

30 DE JANEIRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Azedume sem contraindicação 

Lançada há pouco na Netflix, Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade é uma série documental de sete episódios de apenas meia hora, às vezes até um pouco menos, que vem conseguindo um feito raro em dias - lá vem chavão - polarizados: não há quem não goste.

Seria possível dizer que é um programa despretensioso se Martin Scorsese não estivesse diante das câmeras em carne e sobrancelhas. Não que seja ele a estrela. Scorsese é apenas a escada para o (mau) humor, as frases e as tiradas de Fran Lebowitz - por quem, fica evidente, o diretor é fascinado.

Para quem, como eu, nunca tinha ouvido falar da senhora Lebowitz, uma breve ficha. Prestes a completar 70 anos, e morando em Nova York desde os anos 1970, ela é uma cronista com apenas três livros publicados - e o terceiro reúne os melhores momentos dos dois primeiros.

Seria outro chavão dizer que Fran é uma versão mais despachada de Woody Allen. Que, aliás, foi quem primeiro a convidou para colaborar em uma revista, quando ela mal havia chegado de Nova Jersey. Fran é judia, se veste do mesmo jeito desde jovem e tem opinião sobre tudo. Tanto que é dando opinião que ela ganha a vida, em palestras e conferências pelos Estados Unidos.

Quer dizer: era assim que Fran ganhava a vida. Com a pandemia, a fonte de renda desapareceu, e as dívidas se acumulam. Ela comprou um apartamento maior do que precisaria e mais caro do que deveria porque, na alta, a gente nunca pensa que a sorte pode mudar. Agora dorme com o fantasma da hipoteca. Fran é desse tipo, uma pessoa que existe. Mas com uma combinação de inteligência e espírito que deveria fazer muito comediante que se acha engraçado chorar no cantinho.

Durante os sete episódios, Fran conta passagens de sua vida e dá pitacos sobre todo e qualquer aspecto da cidade, uma estação de metrô que ficou seis meses fechada para receber a instalação artística de um cachorrinho, outra que foi interditada por causa de um mau cheiro que sempre esteve lá. Eu contando não parece engraçado, mas pode assistir à série sem medo, porque é. Fran não tem celular e se diz a única pessoa em Nova York que caminha olhando para a frente, e não para a tela. Isso inclui ciclistas e pais e mães com carrinhos de bebê.

Há quem ache que a série não precisaria se passar em Nova York, que o que importa mesmo é a Fran. Permito-me discordar. Finja que Porto Alegre é uma cidade, por exemplo, não daria um quilo. A gente acabaria apontando mais os problemas que as contradições engraçadas.

Fran precisa de Nova York para contracenar com ela. A cidade é sua escada, coadjuvante e antagonista. Onde mais a Fran poderia observar que aquele é o único lugar do mundo que coloca placas com textos no chão - não lembretes como "mind the gap", mas poemas inteiros e recados de outras épocas, que ninguém vai ver por estarem todos grudados no celular? E ainda tem a incrível maquete de Nova York no Queens Museum, as cenas na Broadway e no metrô, a Biblioteca Pública da 5ª Avenida. Sou colonizada e coxa nesse caso, fiquei gostando ainda mais de Nova York depois da Fran.

E sobre Martin Scorsese? Ele conheceu Fran Lebowitz ainda nos anos 1980, em uma festa. Fran adora festas, diz que sua obra é tão pequena justamente por conta disso. Marty, como Fran chama, deve ter passado todos esses anos se divertindo com as tiradas e com o humor azedo da amiga. Agora se diverte diante das câmeras, rindo como qualquer um de nós quando a Fran larga suas máximas.

Contra o tédio da pandemia, Fran Lebowitz em pequenas doses de meia hora que só têm uma contraindicação: terminam rápido demais.

CLAUDIA TAJES

GORDURA NO FÍGADO 

Durante décadas, o acúmulo de gordura no fígado foi considerado apenas uma das complicações do alcoolismo. Os que negavam o uso abusivo de álcool eram tidos como mentirosos, preconceito só abalado quando os americanos descreveram casos semelhantes em crianças obesas.

Em 1980, o patologista Jurgen Ludwig, da Mayo Clinic, criou a sigla "nash", abreviatura de non-alcoholic steatohepatitis. Nash é o preço que nossos fígados pagam pelo excesso de calorias ingeridas na vida sedentária que levamos.

A esteato-hepatite não alcoólica se tornou uma epidemia entre os norte-americanos, campeões mundiais de obesidade, e invadiu América Latina, Europa, Oriente Médio e Ásia. Chegou até às populações rurais da Índia.

Apesar de incertas, as estatísticas estimam que de 20% a 30% dos americanos adultos armazenem gordura em excesso no fígado. Embora tais depósitos sejam geralmente benignos, um em cada três de seus portadores desenvolverá esteato-hepatite, condição que os levará à cirrose, à insuficiência hepática e ao câncer de fígado.

Nash já é a segunda causa de transplantes hepáticos. Graças aos tratamentos de alta eficácia para a hepatite C existentes hoje, em breve chegará ao primeiro lugar.

Os ácidos graxos ingeridos na dieta caem na corrente sanguínea e chegam ao fígado de onde são encaminhados para outros órgãos, função comparável à dos guardas de trânsito.

Só uma pequena parte dessa gordura ficará armazenada nas células hepáticas (hepatócitos). Dos 14 quilos de gordura existentes no corpo de um homem de 70 quilos, apenas 125 gramas estão alojados no fígado.

Em algumas pessoas, entretanto, a quantidade excessiva de calorias ingeridas provoca aumento tão expressivo dos triglicérides que o órgão fica sobrecarregado e não consegue se livrar deles. Como consequência, há acúmulo de gordura no interior dos hepatócitos.

Além desse mecanismo, ocorrem dois outros. Primeiro: as células do tecido gorduroso (adipócitos) liberam continuamente seu conteúdo aumentando a sobrecarga. Segundo: paradoxalmente, o próprio fígado aumenta a síntese de gorduras; nas esteato-hepatites, o órgão produz três vezes mais gordura do que o normal.

Entre as diversas modificações metabólicas resultantes, a mais relevante é a de resistência à insulina, o hormônio produzido pelo pâncreas, que bloqueia a liberação de ácidos graxos dos adipócitos, entre outras funções.

Essas alterações dão origem a um processo inflamatório crônico, no decorrer do qual os hepatócitos incham - chegam a dobrar de tamanho. Nos espaços existentes entre eles surge um tecido cicatricial rico em colágeno, que ao progredir destrói gradativamente os hepatócitos e enrijece o órgão (fibrose), levando-o ao estágio de cirrose e suas complicações: câncer hepático, falência e morte.

Cerca de 52% dos brasileiros carregam excesso de peso ou são obesos. Não haverá fígados suficientes para transplantar os que desenvolverem falência hepática.

DRAUZIO VARELLA 


30 DE JANEIRO DE 2021
MONJA COEN

BUDA E A MENINA INTOCÁVEL 

Havia uma menina muito pobrezinha, que ficou sabendo da vinda de Buda e de seus discípulos para as proximidades do vilarejo em que morava.

Isso se deu na Índia, há mais de 2,6 mil anos.

Era hábito, nessa época, colocar lâmpadas de óleo no caminho, para que os visitantes soubessem a trilha.

Ora, as pessoas ricas do vilarejo e cercanias compraram muito óleo e mantiveram grandes tochas acesas, desde o amanhecer do dia da esperada visita.

A menina havia ouvido falar de Buda - um ser do bem, que acolhia a todos, sem reservas. Era respeitoso e honrava cada vida humana, bem como animais, plantas, água, terra e vento.

As histórias sobre o príncipe que se tornara mendigo para beneficiar as pessoas era fascinante.

Ela, a menina, não era apenas pobre.

Na Índia, havia um sistema de castas e a nossa amiguinha fazia parte do grupo discriminado, chamados intocáveis. Pessoas que não pertenciam a nenhuma casta e consideradas inferiores até aos escravizados.

Havia um relato de que Buda, caminhando por Varanasi - uma das cidades mais antigas do mundo -, aproximou-se de um intocável. Ora, a lei da época era severa: a sombra de um intocável não poderia tocar a sombra de uma pessoa de qualquer casta. Buda foi caminhando em sua direção. A ruela estreita, o jovem assustado tropeçou e derrubou os excrementos humanos que ele carregava. Seu trabalho era limpar latrinas.

Assustado, já se viu morto quando, qual não foi sua surpresa, Buda se aproximou, ajoelhou-se ao seu lado, ofereceu-lhe a mão para que se levantasse e conversou por um longo tempo com ele. O jovem pária (outra palavra para os discriminados) se tornou um discípulo de Buda.

Por isso a menina queria oferecer a ele uma lamparina. Sem dinheiro algum, sem nada que pudesse trocar por uma lâmpada, ofereceu seus longos cabelos negros.

Com a pequenina lâmpada na mão, correu para a estrada que dava entrada ao vilarejo e, entre as outras enormes lamparinas, com carinho e respeito, colocou a pequenina luz.

Algumas pessoas zombaram dela. Há pessoas assim, que zombam de outras, que batem, apertam, até que morram sufocadas. As pessoas que agem assim são fracas, tolas, covardes e racistas. Aconteceu com Beto, no Carrefour, aconteceu no Capitólio dos Estados Unidos dia 6 de janeiro - uma violência sem sentido, de perdedores que não sabem perder.

Nesse exato momento viu-se uma poeira se levantando lá longe. Todos olharam. Buda se aproximava, seguido por seus discípulos e suas discípulas. Era lindo de se ver. A menina ficou ajoelhada, ao lado de sua lamparina. As grandes pessoas ricas e importantes nem a viram mais. Cada uma queria ficar na frente da outra, cada uma perto de sua grande tocha, exibindo suas riquezas e aguardando por bênçãos especiais, retribuição por suas doações.

Entretanto, houve uma forte ventania. Todas as lâmpadas se apagaram. Apenas a pequenina lamparina da menina se manteve acessa.

Buda se aproximou da jovem, que de joelhos e de mãos postas sorria e chorava.

Namastê (o sagrado cumprimenta o sagrado).

MONJA COEN

30 DE JANEIRO DE 2021
RELACIONAMENTO

OS FRUTOS DE UM ANO DESAFIADOR

A psicóloga clínica e terapeuta de casais Katy Ziegler Hias explica que, no consultório, dois padrões se estabeleceram nos últimos meses. Primeiro, os casais que entenderam o distanciamento como uma oportunidade de se reconectar - muitos deles, ela pontua, já tinham uma base saudável antes do coronavírus. O segundo caso comum foi daqueles em que a ficha caiu: não havia mais disposição para continuar na relação, e a pandemia revelou os problemas mal resolvidos.

- Foi uma oportunidade do casal se olhar mais de perto, se enxergar. Isso tudo tem um lado positivo, de se ressignificar, se reinventar, enriquecer o que já tinham. Mas não dá para negar que foi um ano muito desafiador para as relações afetivas. A vida corrida fora de casa disfarçava muitas dificuldades - pontua Katy.

Nessa gama de aprendizados, ser mais tolerante aparece como um dos trunfos do período. Foi um momento de respirar 10 vezes para escolher as batalhas que se quer travar em casa, avalia a psicóloga Fernanda Vaz Hartmann:

- As pessoas que têm um nível maior de tolerância são menos impulsivas, conseguem um equilíbrio maior entre razão e emoção. E comunicam para o parceiro com mais tranquilidade. Explodir cria uma relação de ataque e defesa. E a intolerância demasiada impede um crescimento relacional. Muitos aprenderam a se autoavaliar, a maneira como falam, pensando de forma produtiva para resolver o conflito.

E a individualidade? Outros tantos entenderam que ela é indispensável para uma boa relação. Por isso, fizeram combinações que vão levar para a vida - seja uma hora diária para ler um livro, fazer exercícios ou meditar.

- Esses momentos são importantes para se nutrir e voltar para a relação de forma saudável. É preciso de dois inteiros para construir um "nós" - garante Fernanda, que é especialista em terapia de casais e famílias.

A pandemia também serviu como momento de reflexão, hora perfeita para alinhar as expectativas com o relacionamento. É isso o que eu quero? O que eu gostaria que fosse diferente? Muitos casais colocaram na mesa seus desejos e sonhos e retomaram valores esquecidos.

- Foi a oportunidade ímpar de repensar. Claro, os casais estão muito cansados, exaustos fisicamente e mentalmente. Mas alguns tiveram energia para encarar esse processo de frente e vão colher frutos - defende a psicóloga Katy.


30 DE JANEIRO DE 2021
J.J. CAMARGO

NOSSAS DOCES MENTIRAS 

Estabelecido que todos mentem, talvez devêssemos organizar esse contingente, criticável na essência, mas, pelo que se vê, inerente à nossa condição humana. E precisamos admitir que existem tipos muito diferentes de mentira. Pode-se mentir para impressionar, certamente contando que o outro não perceba, para consolar, quase sempre correndo o risco de ser considerado um idiota pelo consolado, ou para explicar o inexplicável, essa tendência bem latina de confiar que, se você continuar falando, o palerma vai acreditar. Esse último grupo mereceu do genial professor Paulo Saldiva a proposição criativa de um clube: o "Otary Club", onde os otarianos dispensariam crachá por serem facilmente reconhecidos pela capacidade inata de acreditar.

Minha intolerância mais antiga é com o contador de vantagens, um tipo frequente em reuniões sociais e quase obrigatório em entrevistas de emprego. E, como era de se esperar, essa intolerância aumenta com a nossa velhice, porque parece cada vez mais irritante que alguém suponha que, apesar da idade, ainda somos impressionáveis.

Como a mentira é uma bengala para nossa autoestima, quase nada do que se publica nos sites de relacionamento é completamente verdadeiro. Uma pesquisa baseada nas informações obtidas em uma rede social, na Califórnia mostrou que os homens eram, em média, cinco centímetros mais baixos e as mulheres estavam seis quilos acima do peso anunciado. Isso certamente justifica a marcação do primeiro encontro em um lugar público que permita dar uma inspecionada na encomenda, reduzindo o dano do voo cego característico dessas aventuras. A ficção, vista como o modelo mais intelectualizado da mentira, é a prova de que a realidade, além de crua, é muito chata, e ninguém suportaria a literatura que incluísse o bate-papo da fila do caixa do supermercado ou um romance que relatasse a monotonia de uma vida tranquila e intoleravelmente feliz. Então a imaginação se encarrega de maquiá-la.

O incomparável Ariano Suassuna confessava com naturalidade: "Eu minto, minto muito". E dizia-se encantado com três figuras tradicionais das pequenas cidades do interior: o bêbado, o louco e, naturalmente, o mentiroso. Mas fazia uma distinção entre os mentirosos, elegendo o criativo do bem como o modelo divertido da inteligência mentirosa: o exemplo era de um jovem que atribuía o fato de sua família ser a maior produtora de mel do Recife à proeza de seu pai ter conseguido o cruzamento da abelha com o vagalume, de modo que, com uma lanterna na bunda, elas trabalhavam dia e noite. Não reconhecer a criatividade e o bom humor dessa história e incluí-la de imediato no rol do mau-caratismo identifica apenas um dos sintomas de azedume sensorial, frequente nos adeptos do politicamente correto.

No outro extremo, os religiosos trabalham nos seus cultos com uma tese temerária: a verdade liberta. Quando o drama que flagela um indivíduo for a culpa, é previsível que sim, mas, em medicina, a prática da verdade absoluta, tão defendida pelos anglo-saxões, ignora uma realidade indiscutível: nós nunca estamos prontos para absorver toda a notícia ruim. Sempre defendi que dar a alguém o tempo de recrutar suas reservas emocionais para enfrentar a adversidade é, antes de mais nada, um exercício de empatia e compaixão.

Por fim, guardo com muito carinho a lembrança da convocação de um mestre querido que, às vésperas da morte, pediu que eu falasse no seu enterro. E acrescentou: "Se achar que o que fiz foi pouco, exagere. Se ainda assim parecer pouco, minta!".

Por ele ter sido quem foi, não precisei fazer nem uma coisa, nem outra. E sobrou muito.

J.J. CAMARGO

30 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

O melhor bauru do mundo 

Comi o melhor bauru da minha vida, dias atrás. Precisava imortalizar em papel esse acontecimento. Eu estava no Centro, tive de ir ao Centro.

Adoro ir ao Centro. O Centro é a alma de Porto Alegre. Embora esteja deteriorado pela vulgaridade dos tempos modernos, ainda é um lugar charmoso, repleto de bela arquitetura e espaços arejados, que pode se tornar até sofisticado, se a cidade quiser.

Então, fiz o que tinha de fazer e fui visitar o meu amigo Guilherme, da Beco dos Livros, para ver se encontrava lá algumas novas antiguidades. Cheguei à livraria e ele não estava - o Guilherme é de almoços tardios. Escolhi alguns livros, entre eles Os Últimos Dias, da maior dupla de jornalistas políticos da História, Bob Woodward e Carl Bernstein, e os deixei de lado no balcão. Naquele momento, surgiu-me no baixo ventre um laivo de fome, e pensei: vou descer aqui a Rua da Ladeira e fazer uma boquinha no Tuim. Depois volto para conversar com o Guilherme.

E lá fui eu. Sentei a uma mesinha e perguntei ao famoso garçom Marquinhos Gaiteiro o que havia de realmente apetitoso para espancar uma fome vespertina. Ele, surpreendentemente, puxou do celular e mostrou uma foto de um bauru. Era um bonito bauru, de aparência suculenta. O Gaiteiro informou:

- Esse eu fiz em casa, tentando imitar o daqui. O daqui é especial, porque é feito com carinho, um a um, é um bauru artesanal, não industrial.

Fiquei encantado com aquela veemência. Disse, só podia dizer:

- Bauru, pois! É o que quero.

Ele sorriu.

- E um chope - acrescentei.

Enquanto esperava, André, o dono do Tuim, chegou. Parou à porta. Ficamos falando de amenidades, como o desempenho dos imunizantes que carregam o RNA mensageiro, e, em seguida, estacionou ao lado dele um daqueles tipos característicos do Centro, aqueles sujeitos que ficam zanzando pelas ruas, parando aqui e ali, conversando com um e com outro, bicando uma bebidinha de vez em quando. Ele vestia bermudas, era magro e seus cabelos já tinham embranquecido. Fez uns dois ou três comentários aleatórios e, num rompante, suspirou:

- Minha mãe tem 85 anos e eu nunca mais falei com ela.

O André estranhou:

- Por quê?

Ele desenhou um sorriso triste debaixo do nariz:

- Ela não gosta de mim...

- O que tu aprontaste, para ela não gostar de ti? - quis saber o André.

- Eu bebia... Faz 20 anos que não falamos... Ela não gosta de mim...

E começou a chorar, sem nem se incomodar em desfazer o sorriso. Fiquei olhando da minha mesa, e bem naquele momento o bauru chegou. Estava cheiroso e quente. Um outro conhecido da região parou por ali. E o cara de bermudas repetiu:

- Minha mãe não gosta de mim...

Desta vez, ninguém comentou nada. Dei a primeira dentada no meu bauru. E vi a luz, e o som de fanfarras preencheu o ambiente, e faltou pouco pra compreender o sentido da vida, para onde vamos, de onde viemos.

- Está ótimo! - exclamei para o Gaiteiro.

- Eu não disse? - ele sorriu, satisfeito.

Realmente, o bife não tinha gordura ou nervo. Era batidinho e fino, como os que fazia a minha mãe. O pão cervejinha estava crocante na medida certa. E o queijo... sei que o queijo no bauru é polêmico, mas prefiro com. Pois o queijo se estendia em fiapos derretidos e se grudava no miolo do pão. Era o bauru perfeito.

- Artesanal! - falei para o Gaiteiro. - É mesmo artesanal!

- Artesanal! - ele concordou.

Ao cabo da última dentada feliz, levantei a cabeça do prato e, então, percebi que o filho rejeitado se fora. A excelência do bauru me distraiu daquele drama familiar. Balancei a cabeça. Lamentei: será que não devia ter prestado mais atenção à dor do pobre homem? Afinal, ele parecia estar pedindo socorro... Devia ter dito algo para consolá-lo, quem sabe sugerir que procurasse a mãe e pedisse perdão, sei lá. Fiquei um pouco chateado com minha negligência e quase filosofei a respeito da pouca empatia que temos uns com os outros, de como qualquer prazer nos desvia da angústia alheia e tudo mais. Olhei para o Gaiteiro:

- Acho que vou beber outro chope.

Suspirei, enquanto o chope era tirado. Mais um problema do mundo que não consigo resolver.

DAVID COIMBRA

30 DE JANEIRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OS IMPUNES 

A impunidade é o maior castigo que nós, humanos, impomos a outros humanos como nós. Por isto, recordo agora o horror de duas datas do final de janeiro: a matança na boate Kiss, em Santa Maria, e os deslizamentos na mina de Brumadinho (MG).

Em Brumadinho, até hoje (dois anos depois) máquinas escavam o que foi lama ácida, em busca de cadáveres soterrados na atual terra seca e estéril. Rios e arroios seguem poluídos e a contaminação chega ao mar.

Nada, porém, supera a tragédia de oito anos atrás na boate Kiss. Mais brutal do que o terror da madrugada de 27 de janeiro de 2013, que matou 242 pessoas, é o que veio depois. A Justiça não estabeleceu culpas nem culpados, não há ninguém preso. Tudo leva a esquecer a tragédia, como se os únicos culpados fossem os próprios mortos. A tentativa de fazer desaparecer o cerne da tragédia vira angústia e fere a sociedade inteira.

Nem na guerra farroupilha ou na revolução de 1923, houve tantos mortos de uma só vez e num único episódio como em 2013 em Santa Maria. Mais trágico ainda: ao protestarem pela lentidão e leniência judicial, familiares das vítimas foram processados por um promotor de Justiça que se sentiu "ofendido na honra".

A tragédia foi tratada como simples rixa ou acidente de trânsito, quando - de fato - tratou-se de um crime provocado pelo desleixo e cobiça dos donos da boate e da banda, ao apresentarem como "atração" o fogaréu que gerou o incêndio.

Os oito anos sem decisão da Justiça abrem portas ao descrédito e ao ódio e nada é pior do que o ódio da vingança substituindo a Justiça. Até porque nenhuma vingança ressuscitará os mortos na Kiss ou despoluirá as terras e águas estéreis em Brumadinho.

A impunidade, porém, pode nos sufocar se as mesmas tragédias se repetirem com outras caras. O desastre de Brumadinho, por exemplo, pode repetir-se aqui com a pretendida mina de carvão a céu aberto às margens do Jacuí, próximo à Capital.

Mas há, também, o tragicômico. O governo federal gastou mais de R$ 15 milhões na compra de leite condensado em 2020, cinco vezes mais do que os R$ 3,2 milhões aplicados no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais com os satélites que monitoram a Amazônia e o Pantanal ou preveem o tempo. Outros R$ 2 milhões foram gastos em chicletes. O presidente da República justificou os gastos, porém, alegando que o leite condensado atenua o desgaste físico dos soldados e de outros setores que vigiam a Amazônia e que chiclete auxilia na higiene bucal?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

30 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

CIÊNCIA E FUTURO

Deveria servir de exemplo e inspiração para as lideranças brasileiras a carta que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, endereçou na metade do mês a Eric Lander, presidente e fundador do Broad Institute, criado por uma colaboração entre o Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Harvard, duas das mais renomadas universidades norte-americanas no mundo e centros irradiadores de inovação. Na missiva, Biden diz repetir gesto do ex-presidente Franklin Roosevelt, que em 1944 questionou o seu consultor científico, Vannevar Bush, sobre como a ciência e a tecnologia poderiam contribuir para a segurança e a prosperidade econômica pelos próximos 75 anos. Em tempos em que adeptos do obscurantismo tentam emergir das sombras, a iniciativa é uma firme renovação na crença de que a investigação científica é a chave para o progresso e o bem-estar.

Uma das grandes motivações da carta, admite o próprio Biden, é geopolítica. Não poderia se esperar que fosse diferente. Em um dos trechos, o presidente americano levanta o questionamento sobre como os EUA poderão garantir que estarão à frente na corrida tecnológica especialmente ante à concorrência chinesa e seus investimentos maciços na área. "Nosso futuro depende de nossa capacidade de acompanhar nossos concorrentes nos campos que definirão a economia de amanhã", diz Biden. Um alerta semelhante deveria servir para o Brasil, ao menos para o país despertar para o sucateamento de centros de pesquisa, a desvalorização da ciência, o subfinanciamento e falta de estímulos que levam a uma acelerada fuga de cérebros. Sem uma guinada na política nacional para o setor, os brasileiros continuarão a perder terreno na maratona do desenvolvimento disputada na era do conhecimento.

Joe Biden usa ainda a crise atual da covid-19 para instar os cientistas a discutir e levar para a Casa Branca sugestões de como se prevenir e enfrentar situações semelhantes no futuro, garantindo um sistema de saúde pública mais inteligente e eficaz. Ao mesmo tempo, estimula a busca de respostas sobre como a ciência e a tecnologia poderão lidar com as mudanças climáticas. Biden entende ser essa uma realidade inexorável e que requer "uma ação ousada e urgente". Mas crê que lutar para mitigá-las também se tornará uma grande oportunidade para criar uma nova economia e investimentos inovadores, gerando inclusive milhões de empregos bem-remunerados. Outro propósito nesse novo horizonte de mais 75 anos, ressalta ele, é assegurar que todos esses avanços sejam usufruídos de forma igualitária por seus compatriotas.

No Brasil, onde sequer o Orçamento 2021 foi votado, a profusão de turbulências dificulta planejar e enxergar o que pode acontecer no exercício seguinte. O país não tem o poderio econômico dos EUA, mas pode aos poucos construir políticas e incentivos para que a inovação avance. A área ambiental é um exemplo, com grande potencial de desenvolvimento tecnológico. Mesmo que os recursos públicos sejam escassos, é possível uma melhor redistribuição de verbas. É factível ainda a criação de incentivos para que a iniciativa privada possa investir mais na produção de conhecimento, com ganhos para toda a população. É preciso criar um ecossistema amigável para a pesquisa, estancando a debandada da inteligência nacional para o Exterior. Edificar um futuro esperançoso, no entanto, só será possível sobre os alicerces de uma revolução educacional. Uma transformação no ensino que, sobretudo, assegure à grande maioria das crianças brasileiras um aprendizado compatível com os desafios das próximas décadas.


Meta é abrir até mais 40 ainda em 2021 

No ano em que o mundo conheceu a pandemia, a Lojas Lebes teve resultado geral de vendas 15% menor do que em 2019, isso considerando todos os formatos, físico, e-commerce e por WhatsApp.

- Não nos saímos tão mal, temos pessoas de sangue verde - avalia Otelmo Drebes, presidente da Lebes, referindo-se à cor da empresa e lembrando que 2020 foi tão atípico, com quase oito meses de pontos de venda fechados ou com restrições, que não pode servir de base para as projeções para este ano.

Por identificar oportunidades, a rede prepara a abertura de 30 a 40 lojas até o final de 2021, no modelo que começou a ensaiar na crise: unidades menores, de 100 a 150 metros quadrados, chamadas Lebes Express.

- Há momentos para esquecer 2020. Baseamos nosso planejamento de 2021 em 2019. Mas também aprendemos muito, em melhora de processo e de produtividade, controle de despesa - afirma.

O foco do novo formato de lojas são cidades até 10 mil habitantes, explica Drebes. O objetivo, detalha, é criar opções. Já existem seis unidades Express, operando em uma espécie de teste do modelo, mas a implantação mais estruturada vai ocorrer neste ano:

- Vamos ter dois tipos de loja, a completa, com móveis, eletro, bazar, moda, e estamos introduzindo esse novo modelo, com unidades menores, com custo menor, em cidades menores e mais digitais.

No planejamento da empresa para 2021, o cenário macroeconômico preocupa:

- Está andando de lado, as reformas não avançam.

Mas vê oportunidade para ficar com uma fatia maior da pizza, ou seja, ampliar a participação.

- Se o macro ajudar, ótimo. Se não, vejo empresas com muitas dificuldades, vamos aproveitar espaço que tem.

Afinal, apesar da pequena queda - dadas as circunstâncias -, a Lebes manteve o faturamento da casa de R$ 1 bilhão. Drebes destaca que, em 2020, a rede foi a melhor empresa para trabalhar no varejo no Estado pelo terceiro ano consecutivo, mesmo com lojas fechadas e problemas para vender. Também conta que, em 1º de julho, comandou a "virada" para adoção do sistema de automação SAP. Esse processo é conhecido ser uma espécie de revolução na rotina das empresas, quase como uma troca do sistema de circulação do corpo.

- Antes da pandemia, quando nos preparávamos, comparei a mudança a um transplante cardíaco. Como acabamos fazendo durante a pandemia, no meio do furacão, disse que teríamos de fazer a mudança de coração correndo no meio da tempestade - compara.

A Lebes acabou recebendo premiações pela implantação e virando um caso nacional que a SAP usa para convencer outros clientes de que é possível fazer toda a virada por via remota, como ocorreu na rede gaúcha. Na avaliação de Drebes, o ritmo de imunização contra a covid-19 está "menor que a gente gostaria", mas pondera:

- A vacina faz com que surja um espírito bom, uma esperança. Vai levar um bom tempo, mas vai ser imunizado. Isso faz ver o futuro de forma mais positiva, a vida mais perto.

MARTA SFREDO 

30 DE JANEIRO DE 2021
MARCELO RECH

Populismo em ação 

Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro não poderiam ser mais antagônicos. Mas há uma inusitada inversão de sinais entre ambos quando a voz estatizante da deputada federal Jandira Feghalli (PCdoB-RJ) vibra com a demissão do presidente da Eletrobrás, Wilson Ferreira Junior, enquanto o campeão do liberalismo e ex-secretário de Desestatização Salim Mattar joga a toalha e desabafa: "Venceu o establishment".

A murchada no balão da privatização da Eletrobrás ceifa mais um tanto das esperanças dos derradeiros crentes no conto da versão liberal de Bolsonaro. Dilma comeu fogo de sua base enfurecida quando, ao assumir o segundo mandato, em 2015, nomeou o liberal Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, aprovou cortes em benesses previdenciárias e trabalhistas e deu curso a um programa de concessões à iniciativa privada de estradas, ferrovias e aeroportos.

Bolsonaro recebeu muitos votos de eleitores inconformados com um Estado mastodôntico e cruelmente ineficaz. Mas só deixa perplexos os que desprezavam a trajetória do ex-capitão, eleito deputado federal por sete vezes na condição de líder sindical informal de militares e policiais. Na Presidência, ninguém pode acusar Bolsonaro de trair seu passado. Como parlamentar, Bolsonaro votou sistematicamente a favor de mais gastos e contra cortes públicos. Ele realmente crê no papel central do Estado acima de tudo. Entre decisões duras mas necessárias, como enxugar o Banco do Brasil e prepará-lo para a concorrência, ou ceder ao populismo fácil, opta inexoravelmente pela última alternativa. Jandira Feghali tem razão em ficar aliviada.

Na campanha de 2014, Dilma vendeu a noção de que as contas estavam sólidas e que o Brasil caminhava para um novo ciclo de desenvolvimento. Abertas as urnas, a miragem se evanesceu, deixando no lugar a contabilidade criativa, a alta da inflação e dos juros e uma das recessões mais fundas da história recente. Por isso, foi acusada de estelionato eleitoral. Bolsonaro não faz melhor. Além de manter a máquina intacta, lançou o anzol da vaidade e ambição e retirou do posto o juiz que simbolizava o combate à corrupção para depois espicaçar sua imagem. E, valendo-se de Paulo Guedes, fez aparentar que o Brasil arquivaria as "criaturas do pântano" e rejuvenesceria com a lipoaspiração do Estado obeso.

Em dois anos de governo, Bolsonaro desviou-se da estrada liberal, apaixonou-se pela distribuição de dinheiro público, esqueceu o compromisso de emagrecer o Estado e, sem surpresa, deixou-se enlevar, como todos os seus antecessores, pelos braços largos e providenciais do centrão. Como Collor e Dilma já demonstraram, presidentes caem por diferentes razões, mas o ingrediente comum nos impeachments é o descalabro econômico. Bolsonaro teria algo a aprender com eles.

MARCELO RECH

30 DE JANEIRO DE 2021
J.R. GUZZO

Brasil não é exemplo de incompetência 

Num mundo que tem 200 países, certamente não anima ninguém ficar entre os 20 ou 30 com o pior desempenho em alguma coisa. A questão muda de cara, porém, quando se vê quem está na lista. Se estão ali os países mais bem-sucedidos do planeta, como potência econômica, competência administrativa dos governos e bem-estar social, e se a maioria deles apresenta números piores do que os do seu próprio país, então é preciso pensar na situação toda com um pouco mais calma.

O Brasil, segundo os dados mais recentes, está em 26º lugar entre os países com o maior número de mortes por 1 milhão de habitantes por causa da covid-19 - uma posição que oscila com frequência segundo as estatísticas diárias. Seria muito melhor, é óbvio, que estivesse entre os 26 que têm menos mortos "per capita". Mas fica complicado persistir na crença de que o Brasil é um exemplo mundial de incompetência e de descaso oficial diante da epidemia quando sociedades muito mais bem resolvidas que a nossa estão em situação pior.

Estão à frente do Brasil, na relação de países com mais mortos por milhão, Itália, Inglaterra, Espanha, França, Suécia, Suíça e Portugal, por exemplo - todos com números acima das mil e poucas mortes diárias que estão sendo registradas por aqui.

Há menos mortos no Brasil, relativamente, do que no país mais poderoso do mundo, os Estados Unidos - eles ocupam o quarto lugar da lista -, e na Rússia. Na América Latina, os dois principais países, México e Argentina, estão com números piores do que os brasileiros.

Nada disso é consolo algum para as famílias brasileiras que já perderam mais de 200 mil pessoas queridas em consequência da covid-19. É preciso notar, igualmente, outros números: a Índia, por exemplo, tem 1 bilhão e 400 milhões de habitantes, ou sete vezes mais do que o Brasil, e um pouco acima de 150 mil mortos. Além disso, a taxa brasileira já foi melhor do que é.

Mas também é fato que os Estados Unidos, e sobretudo os países da Europa que estão acima do Brasil na relação de mortos por 1 milhão de habitantes, têm a reputação de oferecerem os melhores serviços de saúde pública do mundo; são citados todos os dias como exemplos de sucesso social. Se eles têm números piores do que os nossos, é preciso explicar, então, por que seus governos não estão sendo acusados de genocídio.

No ambiente de histeria que foi criado em torno da covid, observações como essa são classificadas automaticamente como "negacionistas" - ou, dependendo do grau de irritação de quem está ouvindo, como "bolsonarismo" explícito ou sugerido. Não é negacionismo, nem bolsonarismo - é apenas aritmética.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021


29 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

As vantagens do leite condensado 

Meu primeiro livro, 800 Noites de Junho, sobre o Caso Daudt, eu o escrevi obcecado. Pedi demissão do jornal em que trabalhava para cumprir aquela tarefa e, durante 40 dias, não fiz outra coisa. Entrevistei personagens, revi o julgamento, li processos e jornais antigos, pesquisei, escrevi e reescrevi sem parar. Só pensava no trabalho, só me dedicava ao trabalho, e o concluí nesse prazo que me concedera: 40 dias.

Escrevia na mesa da cozinha, numa Olivetti Lettera 35. Enquanto trabalhava, concentradíssimo, acompanhava-me, ao lado, uma lata de leite condensado. Escrevia, relia, pensava, corrigia e bicava da lata. Quando terminei o livro, estava cinco quilos mais gordo.

Ou seja: gosto de leite condensado. Logo, não posso criticar o apreço do governo federal por esse acepipe. Imagino a quantidade de pudins que são produzidos pelas cozinhas afanosas do Executivo. Pudins à mancheia! E também os "branquinhos" que são servidos às comitivas internacionais em visita ao nosso país. Ah, o branquinho é uma criação da culinária brasileira. Foi, pelo que sei, um contraponto ao "negrinho", como era chamado o doce brigadeiro antes dos tempos politicamente corretos.

Os diplomatas do Itamaraty, se quiserem entreter os convidados com conversação amena, podem contar, inclusive, como o brigadeiro foi inventado por senhoras da sociedade do Rio de Janeiro na campanha presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes, em 1945. Elas distribuíam os docinhos aos eleitores e pediam, com a típica brejeirice carioca: "Vote no brigadeiro, que é bonito e solteiro".

Bem, o brigadeiro, ou negrinho, também leva leite condensado. Compreendo, portanto, o gasto de R$ 15 milhões nessa iguaria. É um investimento no prazer e nas boas relações humanas. Agora, R$ 2 milhões em chiclete, aí é mais questionável. Porque chiclete faz mal para a saúde bucal. Os dentistas condenam com veemência o hábito de mascar chiclete.

Bolsonaro justificou o gasto alegando que os soldados do Exército têm "catanho".

Catanho?

Fui pesquisar. Perguntei para um militar importante, que respondeu o seguinte:

"Catanho é uma ração fria individual, que substitui uma refeição qualquer. Não é uma ração operacional, porque perecível, nem há uma padronização. O mais comum são dois sanduíches pequenos, uma fruta, um chocolate ou chiclete e uma garrafa pequena de suco. Às vezes pode incluir um pedaço de carne ou de frango, dependendo da disponibilidade".

Quis saber qual era a razão da inclusão do chiclete e meu amigo militar explicou que serve para fazer higiene bucal, quando o soldado está em atividade fora do quartel. Um contrassenso, a não ser que o chiclete não contenha açúcar. Espero que o comando do Exército atente para esse detalhe importante: sem açúcar, generais! Ou nossos soldados ficarão com as bocas infestadas de cáries.

Eu mesmo fui vítima de chicletes açucarados. Gostava de mascá-los. Achava que me dava um certo ar rebelde, o James Dean do IAPI, e ainda me adoçava o hálito. De alguma maneira, o chiclete me passava confiança nos tempos instáveis da adolescência. Eu mascava e gingava dentro das minhas calças boca-de-sino, e olhava de lado para as garotas. Até que um dia, numa aula em que a professora falava sobre os ruminantes, virei para o lado e esbarrei no olhar da menina mais bonita do colégio. Ela me fitava com um sorriso debochado e, ao lado dela, outra menina, amiga dela, me observava com expressão idêntica. Percebi que zombavam de mim. 

Mas por quê? O que fiz? Então, ouvi a professora descrevendo a atividade dos ruminantes, e entendi tudo. As meninas mais espetaculares da escola estavam me comparado a uma vaca! Fiquei vermelho a ponto de me dar um suadouro. Interrompi a mastigação. Rolei o chiclete para baixo da língua e lá ele ficou, até que pude tirá-lo da boca e jogá-lo no lixo. Foi o fim do meu hábito de mascar chicletes, para alívio do meu dentista. Para você ver como a beleza da mulher pode até fazer bem à saúde.

DAVID COIMBRA

29 DE JANEIRO DE 2021
CELSO LOUREIRO CHAVES

Olimpíadas

As Olimpíadas de Tóquio de 1964 deram um filme que é considerado um dos melhores filmes sobre esporte. Claro que tem Olympia de Leni Riefenstahl sobre a Olimpíada nazista, mas aí o subtexto ideológico faz com que se veja o filme meio de perfil. O de Kon Ichikawa, não - é mais triunfalista do que ideológico e sua duração meio exagerada é uma curiosidade que, como todas as curiosidades, pode ser investigada no YouTube.

A música de Tokyo Orimpiku é de Toshiro Mayuzumi, compositor que levou para o Japão os princípios da vanguarda musical europeia dos 1950. Na altura do filme das Olimpíadas, ele já tinha feito duas obras inacreditáveis, a sinfonia "Nirvana" e a sinfonia "Mandala". Só depois disso ele entrou para a música dos filmes de John Huston, principalmente A Bíblia... No Princípio, inapelavelmente brega com o próprio Huston fazendo a voz de Deus.

Mayuzumi se saiu bem nos filmes de John Huston. Saiu melhor do que os filmes, aliás, que não passam à frente das Olimpíadas de Tóquio. As Olimpíadas de 1964, porque as de 2020 continuam na incerteza. Isso mesmo: há quase um ano, se achava que essa coisa da covid-19 estaria terminada em questão de meses e os meses foram passando, os casos e as vítimas se acumulando, sem nenhum sinal de que tudo esteja por parar.

Agora, que se fecha esse ciclo de um ano, tudo continua na mesma, a bem dizer, só com mais aglomerações. Ou seja, a crise de saúde continua aguda, com uma desilusão agravada da qual não se quer nem falar: a de que as vacinas, que já estão aí, se tornaram joguete político e são em número reduzido incapaz de fazer com que o ano de agora seja diferente do ano de recém ontem.

Com isso, a catástrofe na música prossegue e se alarga. Quem diria, há um ano, que não haveria carnaval e que concertos, óperas, temporadas permaneceriam em suspenso, lançando a música na incerteza cada vez mais funda sem previsão de um retorno para logo em seguida. Enquanto a crise machuca e mata, restou brigar por tempos melhores, talvez ouvindo Toshiro Mayuzumi para dar som às recordações de um período saudoso do esporte, já que para os músicos de hoje, a ginástica artística é mesmo a luta pela sobrevivência.

CELSO LOUREIRO CHAVES