terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

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17 de fevereiro de 2009
N° 15882 - MOACYR SCLIAR


O baterista misterioso

Como acontece em todas as grandes cidades brasileiras, o bairro onde moro está cheio de altos prédios, habitados por pessoas que têm entre si uma relação casual.

O autêntico vizinho, aquela pessoa que a gente conhece, que cumprimenta, com quem batemos papo (e com quem às vezes trocamos confidências), esta figura está se tornando cada vez mais rara. O anonimato é a regra. Há pessoas que nunca vimos e de cuja existência só tomamos conhecimento pela música que ouve, ou, mais raramente, por algum instrumento musical que toca.

Num dos prédios do bairro havia alguém que tocava bateria. A bateria, como bem sabem os fãs do jazz, já produziu nomes notáveis: Baby Dodds, Jo Jones, Gene Krupa, Buddy Rich, Max Roach, Elvin Jones, Art Blakey, Roy Haynes, Tony Williams; eu mesmo tenho um sobrinho que é um ás nesta área, o Diego, mas o problema é que o misterioso vizinho estava longe de ser um baterista famoso: mais provavelmente estava estudando para sê-lo.

E estudava com um entusiasmo admirável, repetindo os mesmos exercícios 10, 20 vezes. Para ele, toda hora era hora. Num domingo à tarde, por exemplo, logo depois do almoço, quando os mortais em geral são possuídos por um sono invencível, o jovem (com toda aquela energia só podia ser jovem) entregava-se com vigoroso ímpeto à sua vocação. E aí estava o problema.

Entre o iniciante e o artista vai um longo caminho, que exige muita persistência do candidato a músico e, portanto, muita paciência das pessoas que estão por perto. Aliás, posso falar por experiência própria. Na infância, fiz duas tentativas para ingressar no mágico universo da arte musical.

A primeira no piano. Minha mãe arranjou uma professora que morava na Fernandes Vieira, e que não cobrava caro pelas aulas, mas seu método de ensino era peculiar, para dizer o mínimo: ela usava uma espécie de ponteiro feito de madeira duríssima, com duas finalidades: a primeira, mostrar as notas na partitura; a segunda, dar nos dedos do aluno quando este errava.

Apanhei tanto desta senhora, que cheguei a uma conclusão: se algum dia eu me tornasse pianista, seria o único pianista do mundo sem dedos, porque ela seguramente acabaria com eles. Hoje, em retrospecto, posso contudo entender a irritação dela: o que eu fazia com o pobre Beethoven, por exemplo, era um crime.

Anunciei à minha mãe que estava desistindo de ser pianista, mas ela, lutadora como todas as mães judias, não se deu por vencida: fez com que eu mudasse para o violino. O professor era um senhor que morava na Ramiro Barcelos.

Este não batia nos meus dedos, mas a cara de sofrimento que fazia ao me ouvir tocar era impressionante. O que, aliás, não era de admirar: os sons que eu tirava do violino lembravam os miados de um gato sendo lentamente estrangulado.

Voltando ao aprendiz de baterista, ele não tinha a unanimidade da vizinhança. Nada contra a música, mas, ponderavam alguns, não poderia ele ter escolhido outro instrumento, flauta doce, ou mesmo outra forma de expressão artística como a mímica, sublimemente silenciosa?

Penso nisto, porque nesta época de Carnaval as noites são barulhentas e muitos se queixam disso. O baterista não toca mais, com o que a rua ficou silenciosa, demasiadamente silenciosa talvez. Pensem nisto, vocês que não gostam da batucada: talvez um dia vocês ainda venham a sentir falta dela.

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